"Os meus avós na Alemanha pertenciam a uma geração que tinha vivido duas guerras mundiais e por isso, para eles, a questão da paz estava muito presente"

Brunch com Peter Hanenberg, vice-reitor da Universidade Católica de Lisboa.
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Peter Hanenberg está entre aulas e, portanto, é no gabinete do vice-reitor da Universidade Católica de Lisboa que esta conversa decorre ao início da tarde, com café expresso para ambos e uns tentadores chocolatinhos, ali mesmo à mão, para aquele dos dois que se sentir mais guloso. Conheço Peter há alguns anos, e recordo-me até de uma entrevista que lhe fiz sobre os 500 anos das 95 Teses de Lutero, publicada no DN e transmitida na TSF, que foi uma bela oportunidade para falar da Alemanha e da cultura alemã, com a participação também de Constantin Ostermann von Roth, dirigente da Associação São Bartolomeu dos Alemães, e Nora Steen, então pastora na Igreja Evangélica Alemã de Lisboa.

Com Constantin cruzo-me regularmente em Lisboa, mas pergunto se Nora ainda vive em Portugal. "Está na Alemanha. Agora é bispo, ou melhor bispa", diz Peter, sorrindo. Na língua alemã, para a qual Martinho Lutero ao traduzir a Bíblia foi "um cunho decisivo" na evolução (título da tal entrevista DN/TSF), Bisschöfin é de uso corrente desde a ordenação de mulheres pela Igreja Luterana. Para mim, que nunca fui além do primeiro nível de alemão numa incursão pelo Instituto Goethe de Lisboa, ter um reputado germanista a explicar-me como o idioma de Lutero se adapta às novas realidades da sociedade é um luxo.

Ora, confesso que sei como este germanista fez de Portugal a sua casa. E até abro já o jogo parcialmente: Peter é casado com a historiadora Marília dos Santos Lopes, igualmente professora na Católica. Mas de como se conheceram, falaremos mais adiante. Primeiro que tudo, interessa quando e onde nasceu Peter, um católico que, aquando da conversa sobre a influência de Lutero, disse estar "muito convencido de que os católicos alemães são muito protestantes". O ano foi 1961 e o local Krefeld, "na Renânia, perto de Colónia e de Düsseldorf, e também da fronteira com a Holanda. É uma região historicamente bastante controversa, em termos de pertença, mas aberta em termos de contactos com os vizinhos. Na época imperial era Cidade Livre e, portanto, foi sempre livre em termos de religião e a população é mais ou menos de 50% católicos e 50% de protestantes. Era eu pequeno e ainda havia uma escola primária para cada grupo, mas essa tradição acabou nos Anos 1960 e já estavam juntas quando eu iniciei os estudos", conta Peter.

Na época, já não eram as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII que estavam na memória dos habitantes de Krefeld, mas sim a pesada herança da Segunda Guerra Mundial. "A família falava do que tinha acontecido, tanto os meus pais como os meus avós. Os meus pais eram bastante jovens durante o Terceiro Reich e, por isso, as memórias deles eram mais infantis, mas as conversas da parte dos meus avós eram muito fortes. Tanto sobre o que aconteceu depois da guerra - a nossa casa foi ocupada pelo Exército Americano durante algumas semanas - , como antes, durante os anos da guerra, o que viveram. E lembro-me muito bem do medo dos meus avós de voltar a haver uma situação destas. Eles pertenciam a uma geração que tinha vivido duas Guerras Mundiais e por isso, para eles, a questão da paz, a questão da democracia e do respeito pelo outro era algo transversalmente muito presente", explica.

O tema do nazismo era também abordado na escola, e Peter relembra-se bem das muitas histórias contadas, era ele ainda muito miúdo, pelo professor de catequese, um padre que tinha estado no Campo de Concentração de Dachau, o primeiro da era hitleriana, perto de Munique, de início para opositores políticos. Depois, ao longo de todo o percurso escolar, fosse nas aulas de História ou nas de Literatura, o passado recente estava sempre a ser revisitado, para se aprender com os erros. Peter sublinha que apesar de dois importantes líderes alemães do pós-guerra nunca terem pactuado com o nazismo - Konrad Adenauer foi destituído de presidente da câmara por ordem de Adolf Hitler e Willy Brandt foi forçado a exilar-se - durante algum tempo na nova Alemanha Ocidental houve "a sensação de não se terem identificado os culpados do regime suficientemente" e foi a sua geração que "reclamou menos tolerância", sobretudo depois dos julgamentos de Auschwitz, entre 1963 e 1965 em Frankfurt, terem deixado exposto perante a sociedade alemã o Holocausto.

Peter recorda também que cresceu num tempo de grande dinamismo económico. Apesar de dividida em duas pela Guerra Fria, a Alemanha, nomeadamente a metade ocidental, tinha enveredado por um caminho de sucesso, como fundadora da CEE. A democracia consolidava-se e a qualidade de vida melhorava, o próprio estatuto internacional do país melhorava a olhos vistos. "Basta olhar para as velhas fotografias de família. Vejo como muda a decoração da sala, o que se vê nas ruas, os carros. De início é tudo muito modesto, mas vai-se verificando o milagre económico. E também cresci a ver sempre notícias de viagens do chanceler a países que antes não tinham relações com a Alemanha, uma certa reconciliação internacional depois da guerra", conta Peter.

É no início dos Anos 1980 que Peter entra na universidade. Escolhe Bamberg, que fica na Baviera. "Escolhi por ser uma universidade muito inovadora, numa cidade bonita, e por ter uma escola muito boa de Estudos Alemães, onde aprendi muito", diz.

Em Bamberg também existe um instituto sobre a expansão europeia, que estuda a época dos Descobrimentos, e foi essa a razão para a universidade ter sido escolhida por Marília, que chegou como bolseira de mestrado e depois fez também o doutoramento. Pergunto a Peter como foi o início da história de amor entre o alemão e a portuguesa, já que não eram colegas de curso. "Éramos colegas de residência universitária. E encontrávamo-nos na cozinha, que era partilhada. E cozinhávamos juntos mais ou menos, e depois partilhámos muitos almoços e jantares. Mas não terá sido a minha curiosidade pela comida portuguesa a aproximar-nos. [Risos]. Eu na altura não era grande adepto de comer peixe e ainda menos bacalhau [risos]. Tínhamos sim alguns professores em comum, que admirávamos muito, havia algumas aulas que frequentávamos juntos e também eventos. E assim começámos a partilhar muitas coisas [risos]", conta.

Conversavam em alemão, mas a prova de que Peter via a relação seriamente foi ter comprado um livro de autoaprendizagem de português. "Com a ajuda de Marília fiz 20 lições de gramática. Depois, vim a Portugal e comecei a falar com a família e os amigos e tudo se tornou mais fácil", diz Peter, hoje senhor de um português totalmente fluente.

Ficam juntos em 1985, e Peter confessa que, antes das conversas com a futura mulher, sabia pouco sobre Portugal, tirando aquilo que vinha nos livros escolares, sobre a expansão, e também a Revolução de 1974, que muito interessou os alemães. "Quando viemos a primeira vez a Portugal, uma amiga minha alemã pensou que tínhamos voado para África, tão grande era então o desconhecimento", conta. "Nessa primeira visita, vi muitas diferenças entre os dois países. Percebi que era mais pobre. Mas também senti um fascínio por uma certa autenticidade e por uma abertura ao mundo. Fascinou-me também ser claramente um país com um projeto de desenvolvimento em curso, o que era diferente da Alemanha, onde a experiência era já termos chegado a um momento, digamos, de um desenvolvimento já assumido", acrescenta.

A descoberta de Portugal começou por Lisboa, também por Leiria, de onde é a família de Marília. "Desde que cheguei aqui senti que os portugueses sabiam muito bem o que queriam, tinham decidido transformar o país depois da ditadura. Às vezes esquece-se o muito que foi feito depois de 1974 e também depois de 1986 com a entrada na União Europeia. O país tem um trajeto muitíssimo animador, apesar de todas as queixas que todos temos", conclui Peter.

Ao fim de 12 anos de bolsas e contratos na Alemanha, ligados a universidades, Marília teve de começar a pensar na carreira. Isso implicava um regresso a Portugal, como casal, e a oportunidade surgiu quando uma amiga alertou Peter de que havia uma vaga para um germanista na Universidade Católica, em Viseu. Isto aconteceu em 1995, em 1996 também a historiadora Marília começou a trabalhar na Católica, e em 1998 nasceu Lúcio, o filho do casal luso-alemão. "Ele nasceu em Lisboa, mas como em pequeno viveu em Viseu ainda hoje diz ser um homem do norte [risos]."

Sobre a escolha do nome do filho, Peter explica que tem que ver com um dos apelidos de Marília, "nome bonito que ia desaparecer" e também por não haver tradução de Lúcio, pelo que seria Lúcio cá e lá, não como Peter que é Pedro também. "Bem, a primeira vez que falei à minha família do nome Lúcio, disseram logo: Ah, Lutz" [risos].

Em 2006, dá-se a mudança da família para Lisboa e Peter começa a trabalhar nas áreas de Estudos Europeus e Alemães. Também passa a dirigir o Centro de Estudos de Comunicação e Cultura. Atualmente vice-reitor para a Inovação, Peter diz sentir-se em casa na Católica, por acreditar muito no projeto, ao ponto de não se imaginar noutra universidade. Em 2018 publicou o livro Cognitive Culture Studies e, neste momento, coordena o pós-doutoramento em Desenvolvimento Humano Integral, o qual descreve, cheio de entusiasmo, como "derivando a todas as áreas científicas e por isso temos pós-doutorados que são enfermeiros, outros que são psicólogos, temos cientistas sociais, também temos pessoas das artes, da filosofia, e todos têm de apresentar um projeto científico, mas também prático, um projeto de impacto na sociedade portuguesa, seja o desenvolvimento de uma rede de apoio a pessoas idosas, seja um manual de boas-práticas na relação com os imigrantes. O que está por trás deste pós-doutoramento é a ideia de que o desenvolvimento não é só uma questão económica, mas também de relações sociais, e mesmo espiritual".

Assumindo-se um humanista, e com trabalho feito de investigação nessa área, Peter diz que a sociedade está em busca de um novo humanismo, talvez pelos grandes desafios das mudanças climáticas ou da Inteligência Artificial. "O que está em jogo neste momento, o que está a ser questionado, é o papel do ser humano no mundo e que humanismos pretendemos ter num mundo de desafios", afirma Peter.

Europeísta, homem feliz pela reunificação alemã de 1990 (o célebre Muro de Berlim tinha sido derrubado no ano anterior), o vice-reitor da Católica diz que o mundo até pode aprender com a experiência da Europa, mas que esta tem de ser cuidadosa para não parecer demasiado estar a dar lições. "Eu sou um grande adepto do projeto europeu. Nós, em casa, vivemos a Europa. Mas vivemos uma Europa muito específica, uma Europa que também tem data e a Europa que temos hoje não é a Europa que tínhamos quando a Alemanha aderiu, ou quando Portugal aderiu, pois as condições são diferentes e, por isso, o projeto tem de mudar. E o que neste momento tem de mudar é também o reconhecimento do papel da Europa no mundo, abordando com franqueza a responsabilidade que a Europa tem de assumir numa época pós-colonial, mas também com todo o saldo de aprendizagem que me parece muito interessante e positivo".

Pergunto a Peter como viu, durante a crise da troika, a animosidade em Portugal contra a Alemanha, acusada de nos querer impor a austeridade a todo o custo, e o controlo orçamental. Eram injustas as críticas? "Não senti que eram injustas. Eram duas visões diferentes e a alemã venceu durante esse tempo, mas, se calhar, olhando para trás, verificamos que nem todo o caminho que a Alemanha indicou era o certo e que é ela que neste momento vive a tal crise do orçamento, fruto de uma política que só se restringe à poupança, à austeridade e ao controlo das despesas, e que pode não ser suficiente para resolver os problemas das transformações sociais e ambientais", explica Peter, desiludido com certas falhas do seu país, a grande economia da Zona Euro: "Há muitas coisas a correr mal, dos resultados escolares do PISA, em que o país desceu, às condições da transformação digital, em que em certas zonas rurais mostram pior rede que a serra da Estrela".

Antes de me despedir, que a conversa já vai longa, peço a Peter que me sugira um autor alemão que me ajude a entender a Alemanha e um autor português que possa ajudar um alemão a entender Portugal. Ambas as respostas me surpreenderam: "Sugiro Franz Kafka, a quem muitos chamam de checo, mas é um escritor de língua alemã, que olha da periferia, de Praga, mas também de um grupo socialmente estigmatizado, o judeu, e num ambiente que não é exclusivamente de falantes do alemão, o que fez com que a língua surja muito clara, muito límpida, no sentido puro, e reconheça as dificuldades da sociedade e do indivíduo. E, entre os portugueses, talvez prefira realçar aquele que não recomendaria, por que não faz bem à imagem de Portugal. Estou a falar de Fernando Pessoa, pois eu acho que há um poetizar e romantizar que é muito bonito, mas identificando Portugal com isso acho que se corre o risco de deixar Portugal num canto nostálgico ou de um desassossego imaginado que não corresponde às dinâmicas reais."

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