Os melhores livros do ano segundo os escritores
O que lê Afonso Cruz? E Bruno Vieira Amaral? E David Machado? E Gonçalo M. Tavares? E João Magueijo? E João Pereira Coutinho? E João Pinto Coelho? E João Tordo? E Nuno Camarneiro? E Ricardo Adolfo? E Valério Romão? E Vasco Luís Curado? E Valter Hugo Mãe?
Se quer saber quais são os livros de poesia, romance e ensaio que estes autores portugueses mais apreciaram em 2015, leia o Diário de Notícias e surpreenda-se. Entretanto, descubra um preferido de cada escritor.
Uma única falha nesta lista: a ausência de escritoras, ou que não responderam ou desistiram à última hora.
Afonso Cruz: Inventário do Pó, de Joana Bértholo
Começo pelo Inventário do Pó, de Joana Bértholo, porque é um livro de contos de uma autora muito original, e que a isso alia uma escrita poética e de ideias. Quanto a O Paraíso Segundo Lars, de João Tordo, que faz parte de uma trilogia, desta feita dedicado ao autor do romance publicado antes, O Luto de Elias Gro, que junta ascetismo à literatura, resultando num excelente livro. Também gostei de A Cantora Deitada, de Sandro William Junqueira e Maria João Lima, por tratar de uma cantora muito especial que espera que as notas que saem da sua boca não caiam no chão, como, aliás, tantas vezes acontece com a arte e com a literatura. A escrita do Sandro é sempre muito bela.
Bruno Vieira Amaral: Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira
Destaco Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira, por ser uma história pessoal, quase íntima, contada com mestria de velho artífice, de quem está habituado a pesar cada palavra antes de a escrever. Mas a história pessoal tem uma ressonância geracional: uma geração que cresceu entre duas culturas, entre dois países, entre duas famílias, uma geração mestiça que, neste livro, se conta a si mesma. E há o livro Mersault, Contra-Investigação, de Kamel Daoud, com uma ideia muito boa: contar a história de O Estrangeiro do ponto de vista da vítima (mais precisamente do irmão da vítima) que, no livro de Camus, era apenas designada como "o árabe". É muito mais do que essa premissa de reparação literária. É sobre a possibilidade de apropriação de uma língua que outrora nos foi imposta, as múltiplas histórias de cada história, a construção da identidade de um país, a paisagem da Argélia. Não posso ignorar Racismos, de Francisco Bethencourt, por ser uma obra de investigação inovadora e nada paroquial, (bem) escrita por um grande historiador português e que, apesar da quantidade de informação recolhida, não é superficial ou hermética.
David Machado: As Reputações, de Juan Gabriel Vásquez
Acredito que Juan Gabriel Vásquez é um dos grandes autores da nova literatura latino-americana. Gosto de tudo o que escreveu até hoje. Neste romance tão curto, As Reputações, cabem todos os dilemas da alma - amor, morte, velhice, inveja e a memória. Também Luna Caliente, de Mempo Giardinelli, porque conta a história de um homem que regressa a casa, no Norte da Argentina, após oito anos a estudar em França, triunfante e cheio de ambição. Mas uma única noite é suficiente para o lançar no abismo do próprio desejo. The First Bad Man, de Miranda July, também é um romance sobre a mulher. Melhor: é o romance sobre a mulher (sobre a maternidade, também). Nele habita uma personagem feminina extraordinária, com uma voz extraordinária, ao mesmo tempo comum e bizarra - como talvez sejam todas as mulheres. É fundamental alguma editora deitar-lhe a mão.
Gonçalo M. Tavares: Quinhentos Poemas Chineses
Esta não é uma escolha dos melhores, é uma escolha instintiva de livros/revistas que, de repente, estão perto das mãos. Por acreditar que a proximidade física não é um acaso: Quinhentos Poemas Chineses, da editora Vega, coordenados por A. Graça de Abreu e C. Morais José, onde se tem oportunidade de ler poemas de Du Fu entre muitos outros grandes poetas: "He Zhizhang, a cavalo, oscila como um barco,/ Os olhos brilham, se cair num poço continuará a dormir." Acrescento Duzentos Poemas, de Emily Dickinson. Este verso resume: "Beauty - be not caused - Is it - / "A Beleza - não tem Causa - É." E também todos os volumes da revista Nada. Uma publicação invulgar - de pensamento, cultura e também ficção.
João Magueijo: Barracuda, de Christos Tsiolkas
O ano foi muito mau segundo a minha opinião, daí que escolha os melhores que li: Barracuda, de Christos Tsiolkas, porque é um dos livros mais brutais já lidos. Descreve as mazelas deixadas pelo sistema de classes num país que supostamente não as tem, a Austrália. Do autor de A Chapada, portanto talvez não seja de admirar ser um caso de no punches pulled. The Pike, de Lucy Hughes-Hallett, é uma estranha e bela biografia do pai da língua italiana moderna, Gabriele D"Annunzio, o qual, como o subtítulo do livro sugere, pode ser descrito como "poeta, sedutor e pregador da guerra". Quando se pensa que não pode haver tanta loucura concentrada na vida de uma pessoa só... acontece algo de surpreendente e radical até ao fim. E Levante-se o Réu, de Rui Cardoso Martins: maradice total, entre o jornalismo e a literatura, que mostra como a bela arte da crónica está viva e recomenda-se em Portugal, apesar da muita mediocridade.
João Pereira Coutinho: Reflexões sobre a Revolução em França, de Edmund Burke
Reflexões sobre a Revolução em França, de Edmund Burke, em que temos finalmente à disposição as "Reflexões" de Burke, o livro fundador do conservadorismo anglo-saxónico moderno. Também Minha Formação, de Joaquim Nabuco. Porquê? Nome cimeiro do abolicionismo no Brasil, escreveu esta autobiografia intelectual - um monumento da língua portuguesa, estética e eticamente falando. Por último, Submissão, de Michel Houellebecq, que é um romance distópico, perturbador e sarcástico sobre uma França convertida ao islamismo - e com a "colaboração" dum povo cobarde. Colaboração, na história francesa, sempre teve um sabor amargo.
João Pinto Coelho: O Que Conta, de James Salter
Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida. Porquê? O cabelo é crespo e denso. Porque é cabelo, tem pontas soltas; porque é denso, oculta as raízes; e poderia ser a metáfora sobre uma menina mulata - aterrada - em Lisboa. É com esses fios que traça os caminhos entre lugares distantes, ou para os espaços reservados. Voz nova e surpreendente de quem passei a esperar muito. Também, Tudo O Que Conta, de James Salter, autor desaparecido em 2015, que deixa neste último livro, uma pilha de desenhos sobre as memórias de Philip Bowman, um segundo-tenente que lutou na Guerra do Pacífico e emergiu no meio literário de Nova Iorque. Usando linguagem crua, emparelha o trivial e o excecional num grande romance - outra tradução insuperável de Francisco Agarez. E também KL - A História dos Campos de Concentração Nazis, de Nikolaus Wachsmann, de ambição imensa: descrever o sistema concentracionário alemão, que sucede à tomada do poder por Hitler, desde a anarquia da sua génese ao processo burocrático que conduz à industrialização do morticínio determinado pela política de antissemitismo eliminacionista do Reich. Síntese introdutória do individual para revelar um todo carregado de interrogações - porque a Razão persiste insuficiente.
João Tordo: Our Souls at Night, de Kent Haruf
Our Souls at Night, de Kent Haruf, é excecionalmente belo sobre a velhice - uma mulher e um homem, idosos e viúvos, começam a dormir na mesma cama para combater a solidão. O último livro de Haruf e uma belíssima meditação sobre o fim da vida. Também as Areias do Imperador - Mulheres de Cinza, de Mia Couto. Uma coisa é um romancista histórico escrever um romance histórico; outra é Mia Couto, um dos originais artistas da língua portuguesa, aventurar-se nesse dificílimo território. Um livro fascinante sobre o remoto e esquecido Império de Gaza. Também apreciei O Caçador do Verão, de Hugo Gonçalves, por ser a visita aos anos do nosso crescimento - o princípio do declínio da República Portuguesa, os fabulosos anos 1980 -, e à melancolia da infância através de José, o protagonista, a mãe Teresa e o avô Joaquim: escrita elegante e história comovente.
Nuno Camarneiro: O Coro dos Defuntos, de António Tavares
Destaco O Coro dos Defuntos, de António Tavares, porque é um livro muito bem escrito, que homenageia a obra de Aquilino Ribeiro e revisita um passado e uma geografia agora esquecidos. Também Sapiens, de Yuval Noah Harari, por ser uma história da humanidade, da formação do Homo sapiens aos nossos dias. Um livro arrojado e nem sempre consensual que questiona o percurso feito pela nossa espécie e as razões pelas quais conquistámos o planeta. Não esquecer Persianas, de Miguel Manso, porque após a morte do Herberto Helder ficámos órfãos de grandes poetas. É altura de olharmos para os mais novos e tentar encontrar sucessores. Miguel Manso é um bom candidato.
Ricardo Adolfo: A Submissão, de Michel Houellebecq
A Submissão, de Michel Houellebecq, é demolidor na verdade e na dor. François é adorável na sua tristeza e a sua pequenez é grandiosa, como no melhor do autor. Tomara que fosse uma visão brutalmente falhada. Também Desmobilizados, de Phil Klay, onde está a guerra, linda de morrer na sua demência. Lemos todos os dias sobre estes conflitos e já nada conseguimos sentir. Leva-nos de volta para onde sentimos outra vez a verdade do horror. A finalizar: Jóquei, de Matilde Campilho, porque fazer as palavras dançar é difícil. Fazê-las dançar como quem dá um enxerto de pancadaria na língua e a deixa no chão muito mais bonita é ainda mais extraordinário. A perversão é apaixonante.
Valério Romão: Medicin, de António Poppe
Medicin, de António Poppe, porque trata e trabalha a palavra como uma matéria de pesquisa entre outras. Nele não se encontram quaisquer resquícios de subserviência ao texto, à grande família de místicos em que - mais por conveniência nossa do que por vontade dele - se filia, ou ao cânone. A palavra é uma tradução (tanto mais acertada quanto mais fiel) de uma experiência e, por isso mesmo, cada leitura de Poppe por Poppe transcende em muito o texto-base sobre o qual assenta para transformar-se num canto que tanto aceita como reclama todos os cantos e que, sobrevivendo à fragilidade intrínseca dos homens que pela primeira vez os invocaram, nos perpassam o coração quando os ouvimos ou lemos. E Poppe apropria-se deles, sem nunca os domesticar, para fazê-los correr ao lado da sua própria voz. Não é performance, senhores. É outra coisa, e outra coisa inteiramente mais alta, mais vasta e mais antiga. Num ano em que li muito mais poesia do que prosa, Gnaisse, de Luís Carmelo, tornou-se muito naturalmente a referência para romance do ano. Consegue, no livro, conciliar o princípio da identidade com o da contradição, a precisão mecânico-microscópica de Bach com a liberdade desbragada do free jazz, a micro com a macrofísica. Não obstante a sofisticação do romance, a dificuldade está toda do lado do escritor e ao leitor fica reservado, além do prazer da reconstrução do puzzle, um belíssimo e inesperado final. Ainda Magnífica e Miserável Angola desde a Guerra Civil, de Ricardo Soares de Oliveira, pois do território muitas vezes incipiente dos estudos sociais e políticos, onde por vezes a única coisa a apresentar é, na verdade, o título que serve de isco para o leitor, surge um livro a todos os níveis admirável: pelo rigor histórico e factual, pelo delicado equilíbrio entre exposição e posição (do autor), pela notável capacidade de convocar a imensa complexidade da paisagem política, social e económica de Angola, nas últimas décadas, abdicando, por isso, de ser um manual travestido de livro, abundante em respostas rápidas e paliativas para, outrossim, suscitar no leitor a inquietação própria das grandes obras. Livro fundamental.
Vasco Luís Curado: Da Natureza das Coisas, de Lucrécio
Da Natureza das Coisas, de Lucrécio, porque há mais de 100 anos que não se fazia em Portugal uma tradução integral em verso de um dos mais notáveis clássicos latinos. Onde explica, sem recurso aos deuses, fenómenos como os meteoros, as doenças, as nuvens, os sonhos, o amor. A Chave dos Profetas, de padre António Vieira, era considerada pelo próprio a sua obra-prima, embora não a tenha conseguido completar. Neste tratado teológico, político e histórico, interpreta as profecias bíblicas que dão como certa a vinda deste império universal que será o último tempo, e o tempo pleno, do mundo. Por último, Cidades da Planície, de Cormac McCarthy, por ser escrito a pensar numa adaptação cinematográfica que nunca se concretizou, em que as personagens são cowboys que pressentem o fim do mundo que conhecem. Mostra como, numa paisagem com marcas de cataclismos geológicos e civilizações extintas, as gerações humanas repetem os dramas.
Valter Hugo Mãe: Psicopolítica, de Byung-Chul Han
Escolho Psicopolítica, de Byung-Chul Han, devido ao seu pensamento que é quase má educação. A rispidez é um modo clínico de fazer a filosofia dos nossos dias. Não é um homem desencantado, é um homem enfurecido. A fúria, no entanto, traz-lhe uma lucidez admirável. Também Arrancar Penas a Um Canto de Cisne, de Luís Quintais, onde existe uma elegância muito rara no autor. A sua poesia é um modo de educar a fala. Gosto da sua quase simplicidade. No entanto, nada nele é simples e vale pela quase incómoda contenção. E pela inteligência clara, limpa. Não esquecer O Estranhíssimo Colosso, de António Cândido Franco, afinal a figura de Agostinho da Silva é apresentada numa transparência admirável. Somos levados numa pesquisa marcada por uma honestidade profunda que não procura senão conviver com esse "colosso", mais do que o explicar. Há uma dimensão de maravilha que se justifica e cria um brilho no olhar do narrador. Convivemos com Agostinho da Silva como sobretudo encantados.
[A notícia completa conforme publicada na edição deste domingo do DN foi publicada às 12.00]