Há décadas a fazer cinema de realismo social de vanguarda, os manos Dardenne continuam teimosamente iguais a si próprios. Em Tori e Lokita até estão mais pessimistas. Mostram a história de duas crianças africanas sem papéis na Bélgica, Lokita, adolescente e despachada, Tori, mais novo e vulnerável. Enquanto tentam obter visto para serem reconhecidos como refugiados os dois imigrantes sobrevivem a todo o custo mas, para tal, caem numa máquina mafiosa que os explora como correios de droga e mão-de-obra ilegal..Luc e Jean-Pierre filmam este sufoco como um jogo de crianças, coisa que dá ao filme uma estrutura bem inquietante. Na verdade, Tori e Lokita é um thriller de realismo social que explode no pior dos pesadelos. Uma tragédia seca embalada com uma secura dos infernos. Mais do que nunca, os Dardenne apontam para a criação de um suspense do real. Pode não ser coisa nova, mas a desumanidade em estado puro dá para isso. Antes de começar a conversa com o DN nos encontros Unifrance, os dois irmãos confessavam estar espantados com o facto de Le Jeune Ahmed, o anterior filme, continuar inédito em Portugal..Têm a consciência do efeito de desconforto que este filme causa no espectador? Luc Dardenne (LD) - Sim, temos essa consciência, sobretudo pelo que acontece no final. Quisemos sobretudo fazer algo em torno do destino de dois jovens imigrantes que são apanhados numa armadilha mecânica que os enclausura pela questão dos vistos. Enfim, são reféns de falsos documentos que lhes permitem continuar na Bélgica. Quisemos também filmar a amizade entre os dois, Lokita e Tori. Podem não ser irmão e irmã de verdade, mas comportam-se como tal. Ao fim ao cabo, interessava-nos filmar essa amizade profunda, mais forte do que os elos de sangue. Uma amizade que luta contra essa mecânica que os aprisiona. É tudo contra eles mas Tori e Lokita mantêm-se juntos e vão até aos limites, enfrentando essa máfia que controla os imigrantes. Ao mesmo tempo, contamos a história de uma mentira, a de Lokita. A jovem mente para salvar Tori. E, acima de tudo, é uma história de salvação..Um conto de sacrifício? LD - Isso, voilá! Há um lado sacrificial..O quão realista é este relato da integração dos imigrantes ilegais na Bélgica? Jean-Pierre Dardenne (JPD) - Tentámos estar o mais possível perto da verdade. Este filme nasceu depois de tudo o que lemos na imprensa sobre estes casos, sobre meninos órfãos africanos que chegam ao nosso país. Ao nosso país e a outros na Europa, como a Itália... São histórias cujo final as pessoas ficam sem saber. O que acontece a estas crianças!? É claro que somos levados a pensar que um grande número são presas nesta rede de tráfico de imigração... E acabam por ser rebocados para o tráfico de órgãos, de droga e humano, enfim, as piores coisas! Isto não é normal ainda se passar hoje. Por isso, quisemos fazer este filme com um ponto de vista realista e sem saída para um happy end..Depois destes anos todos em que já usaram tantas vezes crianças, dirigi-las agora é cada vez mais orgânico? LD - Gostamos tanto de dirigir crianças! O grande momento são os ensaios..No plateau? LD - Não, antes, um mês antes para se criar um clima de confiança. São cinco semanas em que trabalhamos com os miúdos com uma câmara de vídeo. E é aí que até ganhamos o décor - os ensaios permitem dar-nos detalhes. Consoante o que os miúdos fazem vamos percebendo que, afinal, é preciso depois uma porta ali ou acolá, coisas dessas. Nesses ensaios descobrimos toda a coreografia das cenas e todas as modificações nos diálogos e movimentos. É aí que os meninos passam a ser atores e as personagens! Nessa altura, perdem os medos e todo o stress, mas é claro que com as crianças é sempre diferente. Em A Promessa tínhamos o Olivier Gourmet para os ajudar ou em O Rapaz da Bicicleta a Cécile de France, desta vez não - os dois atores principais eram não profissionais, só que isso acabou por ajudar. Tornaram-se nas suas personagens muito rapidamente e todo o processo foi extremamente divertido..Mas vão tendo métodos diferentes na abordagem durante a rodagem? LD - O método é o mesmo sempre mas no tratamento das personagens vamos atrás do que o filme pede. Por exemplo, a nível de mise-en-scène, quisemos estabelecer uma ligação com a força do corpo de Lokita, ela é que é o elemento forte do duo. Quisemos dar uma impressão de resistência, que se mantém firme, mesmo contra tudo o que lhe acontece. Depois, jogar com o contraste do menino Tori, que é mais fraco, mas que anda por todo o lado. A câmara tem de ir atrás dele e aí tínhamos de encontrar soluções para captar a energia e o contraste com a imobilidade de Lokita. Foi necessário pensar este projeto como um filme de aventuras, sobretudo com Tori, alguém que procura as soluções, o maravilhoso. Claro que não chega lá mas funciona como uma metáfora de esperança..Com toda esta crise do cinema dito de autor, qual o espectador ideal para ver este filme? JPD - O espectador que queremos é aquele que paga o bilhete e não fica à espera de o ver na plataforma. Quero um espectador que queira ver cinema nas salas, é isso que esperamos mesmo percebendo que Tori e Lokita possa ser uma aventura, sobretudo porque é preciso pormo-nos no lugar do Tori e da Lokita. LD - O meu espectador ideal é o que não chega à sessão por acaso e que não olhe para os imigrantes como uma ameaça. Queria que saíssem do cinema e percebessem que aqueles meninos são como nós, mais nada. Enfim, era bom que as pessoas saiam da sala e não fiquem indiferentes nem desconfiadas em relação ao tema..dnot@dn.pt