As portas verdes de madeira acusam o passar do tempo e na fachada sobressaem alguns remendos que precisam de tinta, mas este edifício do Chiado é "um sítio que está cheio de boas recordações, cheio de boas memórias, é um exemplo do património cultural como realidade viva". Guilherme d"Oliveira Martins tem um interesse especial pelo número 6 na Rua João Pereira da Rosa, que é o prédio de Lisboa com mais placas evocativas. Estão lá sete, a recordar os ilustres que ali viveram, e uma delas é do tio-bisavô do antigo ministro. "Os meus tios-bisavós aqui viveram e a memória que eu tenho, desde sempre, de pequeno, de passar por aqui, com o meu avô, é uma memória justamente de um lugar que estava cheio de referências", explica..Daqui saíram inúmeras obras importantes da cultura nacional. "Poemas de José Gomes Ferreira, contos de Ofélia Marques, desenhos, muitos tirados destas janelas, de Bernardo Marques, além dos principais textos que Ramalho Ortigão fez", resume Guilherme d"Oliveira Martins. Porque aqui viveram (e morreram) grandes figuras dos séculos XIX e XX. "Não há outro prédio que tenha tido um conjunto tão grande e isso deve-se a Ramalho Ortigão", realça o atual administrador da Fundação Caloste Gulbenkian. O escritor foi o primeiro célebre a viver aqui, nas águas furtadas, onde recebia com frequência o amigo Eça de Queiroz, com quem escreveu O Mistério da Estrada de Sintra ou As Farpas. Viveu aqui até morrer, o que está imortalizado numa das placas..Foi Ramalho Ortigão quem recomendou ao historiador Joaquim Pedro de Oliveira Martins, vindo do Porto para Lisboa, a casa do primeiro andar, que estava devoluta. Eça de Queiroz conhecia a casa, porque era visita de Ramalho Ortigão, e também recomendou a casa a Oliveira Martins..E portanto, a partir de 1888, Oliveira Martins "passa a habitar esta casa, com a sua mulher", dona Vitória de Mascaranhas Barbosa, explica o antigo ministro socialista, referindo-se aos tios-bisavós. "Bem serviu a sua pátria/A sua memória deve ser abençoada", diz a placa acerca do "ilustre historiador portuguez" que ali morreu em 1894. Não sem antes receber a vista do rei. "O rei D. Carlos deslocou-se aqui - era raro, uma situação completamente rara -, para saber da doença do seu amigo", conta Guilherme d"Oliveira Martins. Após a morte do historiador, fica no apartamento a viúva, que viria a morrer em 1921..É nessa altura que chega ao prédio o casal António Ferro e Fernanda de Castro. Ele, escritor e jornalista, com passagens pela revista Orpheu, O Século, Ilustração Portugueza e Diário de Notícias. Ela, ilustradora de livros infantis e impulsonadora dos jardins de infância da Câmara de Lisboa. Cada um com direito a uma placa na fachada..Seguem-se, para o segundo andar, o casal Bernardo Marques e Ofélia Marques. "Bernardo Marques é um autor absolutamente extraordinário. É um dos nossos melhores desenhadores, ilustradores, pintores. E Ofélia uma poetisa, escritora para crianças, que, infelizmente, vai encontrar o fim dos seus dias aqui nesta casa. E, aliás, isso impressiona muito Fernanda de Castro, uma vez que era uma jovem, uma mulher extraordinariamente atraente, no sentido de muito generosa, e um grande talento", comenta Oliveira Martins..Por essa altura, vem também o poeta José Gomes Ferreira, o sétimo ilustre com direito a placa evocativa naquele prédio. "Apesar de tudo ainda não estão completas", defende Oliveira Martins, para quem António Quadros, filho de António Ferro e Fernanda de Castro, também deveria ser recordado com uma placa na fachada. "Escritor, ensaísta, foi o fundador do IADE, teve um papel muito importante na decoração, design e artes plásticas, foi pioneiro relativamente a isso, mas é de facto um romancista, um ensaísta que eu tive o gosto de conhecer", elogia, lembrando ainda o seu papel como coordenador das "célebres bibliotecas itinerantes" da Gulbenkian, "algo que marcou profundamente a abertura da nossa cultura"..Nos anos 30 do século XX o prédio é um centro que fervilha cultura e que era chamado de Soviete dos Caetanos, numa alusão ao nome que a rua então tinha: Calçada dos Caetanos. "Fernanda de Castro e Ofélia Marques designam este prédio numa altura em que havia uma muito grande camaradagem", conta Guilherme d"Oliveira Martins. "E houve sempre uma amizade muito forte, muito forte. Muito aberta, uma vez que estamos a falar de pessoas com orientações muito diferentes", realça o antigo ministro, lembrando que António Ferro, jornalista do DN que em 1930 fez a "Agitada e sensacional entrevista com Adolfo Hitler, chefe dos nacionais-socialistas", era também "braço-direito de Salazar" e vem a ser secretário da Propaganda Nacional. "Mas isso não impede essa ligação com pessoas de horizontes muito diferentes"..sofia.fonseca@vdigital.pt