Os Dias Realistas, um lugar para viver e refletir sobre o quotidiano
A noite convida a ficar lá fora. O silêncio só é cortado pelo som dos pássaros. Tó e Margarida estão no alpendre. Admiram as nuvens a passar, ela pergunta pela última pintura da casa mas ele não se lembra. Ela pede que faça um esforço de memória. Ele está taciturno, calado e introspetivo. Ela precisa de conversar mas parece conformada com a distância do marido. Nos últimos tempos, Tó acusa o desencanto pela vida. Sofre de uma doença incurável neurodegenerativa e o diagnóstico do quotidiano acusa o inevitável cansaço.
Depois de uma breve discussão entre os dois, aparece o novo casal de vizinhos. Bambi e João. Mais jovens, parecem mais frescos prontos a entrar na casa nova, de bem com a vida, e trazem uma garrafa de vinho para brindar à nova amizade. No decorrer da noite, entre estranhos, surge a partilha de segredos, dúvidas, incertezas, medos e fragilidades no alpendre daquela típica casa americana, com esquilos e raposas ao redor. Catarina Furtado, João Reis, Paulo Pires e Manuela Couto são os eleitos para dar corpo e alma aos dilemas e interrogações de todos e de cada um na peça Os Dias Realistas que amanhã se estreia no Auditório dos Oceanos do Casino Lisboa.
Partindo do texto de Will Eno, o multipremiado dramaturgo norte-americano cuja peça esteve em cena na Broadway recentemente, a encenação de Marcos Barbosa segue o molde original com tradução de Jacinto Lucas Pires. "Há duas forças grandes nesta peça, a força das relações e, ao mesmo tempo, a força do desconhecido, o que não controlamos e nos toca a todos, aqui surge em forma de doença, mas é o mistério da vida", explica o encenador.
O próprio Will Eno tem acompanhado o processo e o feedback "tem sido muito positivo. Tem adorado os atores". Catarina Furtado, na pele de Bambi, revela que o regresso às tábuas do teatro já era há muito desejado. "Não sei se se pode usar a palavra ressaca mas era isso que sentia, estava com muita vontade, com muitas saudades do palco, achei que era a altura e o elenco certo, estou muito feliz, tem sido maravilhoso trabalhar com a Manuela em particular, e o mais importante, o processo em si e toda a aprendizagem, o texto é uma reflexão muito crua sobre o ser humano", elucida a atriz que encarna uma jovem mulher instável com dificuldade em lidar com as adversidades da vida.
"A Bambi é alguém que teve uma vida dificílima, como se vai perceber, que tem uma imensa dificuldade em lidar com a dor, a doença, com o sofrimento, é carente, insegura, absolutamente instável, eu adoro-a, acho que ela precisa de algum colo, todos nós precisamos, no fundo", diz Catarina Furtado que, pela primeira vez, contracena com o marido, João Reis, em palco.
"Trabalharmos juntos é fácil, mas não tenho com ela nenhum tipo de tratamento privilegiado. Em casa falamos e partilhamos ideias, obviamente que me preocupo com ela e por ela mas temos a nossa autonomia", diz o ator. E revela o perfil do seu personagem Tó. "É bastante mais triste do que parece, é uma personagem que lida com a sua doença sobre a qual não se sabe muita coisa, que o deixa um bocadinho desestabilizado, infantil. É muito pessimista e rezingão porque está com muito medo da morte, torna-se uma pessoa solitária e rude", explica.
Paulo Pires confessa que o primeiro encontro com a obra não foi fácil, mas percebeu que se tratava de algo "muito diferente, interessante e especial". Pelo menos duas vezes por ano tenta fazer teatro, a par com o cinema e ficção. "Acabam-se os jantares com os amigos, o teatro é muito absorvente, mas vale muito a pena", conta o ator. Interpretar o "histriónico e efusivo João" é um verdadeiro desafio. "Ainda hoje nos ensaios temos quebra-cabeças porque são muitas emoções e pensamos no encaixe que temos de dar às personagens", continua. "A minha personagem carrega um fardo enorme porque está a sofrer, sabe que tem a doença, mas nem sequer pode partilhá-lo com a mulher, a Bambi, tem de parecer que está tudo bem", remata o ator que se prepara para entrar numa nova série da RTP.
Já Manuela Couto, a atriz que interpreta Margarida, destaca a atualidade do texto do dramaturgo norte-americano e revela que o cerne da obra, este encontro entre as quatro personagens, "sugere o melhor para todos, e, curiosamente, para cada casal, é como se fosse o espelho de comportamentos e atitudes". "Os quatro acabam por fazer companhia uns aos outros, à espera do inevitável. Não estamos todos?", questiona a atriz.
A interrogação fica no ar, entre outras dúvidas e questões, num lugar onde a vida de todos os dias dá lugar a reflexões sobre o casamento, o quotidiano, o amor e a morte.