Veste fato de pirata e pode bem ser um dos marinheiros ingleses do Revenge, naufragado na baía de Angra quando enfrentava sozinho 53 galeões ao serviço do todo-poderoso Filipe II de Espanha, I de Portugal. Mas também há uma fidalga, trazendo no vestido as rendas da Flandres que a exibição do estatuto lhe impõe, e um fotógrafo à la minute, como os que por aqui andavam há 100 anos a fixar para a posterioridade o instante dum passeio de domingo. Estas e outras personagens, resgatadas à memória popular de Angra do Heroísmo, "voltaram à vida" nos dois primeiros fins-de-semana de julho, na segunda edição do Rua Direita, projeto de animação cultural da Cães do Mar, que cruza o teatro, as artes plásticas e visuais, a música e a performance..Na origem do nome do evento está o local que lhe serve de palco, desde cedo fulcral na vida da cidade, que a localização estratégica somada à brandura da baía, tornava apetecível às armadas de bandeiras diversas que cruzavam o Atlântico. Uma importância já notada no século XVI pelo micaelense Gaspar Frutuoso, que não tinha dúvidas em escrever em Saudades da Terra: "Todas as coisas necessárias há em muita abundância e se vendem pelas portas, e andam vendendo por toda a cidade, ao costume de Lisboa, exceto vinho e azeite, que somente se vende nas tavernas, e a carne nos açougues, com que fica parecendo, e é, uma Lisboa pequena"..A ligação a este passado tão cheio de histórias reais como de lendas "é um dos objetivos do Rua Direita", como nos diz a co-diretora artística Ana Brum, a cenógrafa que, em miúda, quis ser arqueóloga: "Para cada uma destas histórias fazemos entrevistas, ouvimos muitas pessoas, vamos a arquivos e bibliotecas, de tal maneira que as pessoas já nos procuram espontaneamente para nos contarem as histórias de pais e avós. Acaba por se tornar um trabalho de identidade.".Tudo começou com os dois diretores artísticos, Ana e o inglês Peter Caan, a quererem desenvolver um projeto artístico de proximidade com a população da Terceira, mas que só um financiamento nacional, através da Direção-Geral das Artes, permitiu concretizar com a qualidade desejada: "A primeira edição, em 2021, correu muito bem, com um grande envolvimento e entusiasmo dos comerciantes locais, o que nos deu fôlego para continuarmos." Formada pela Escola Superior de Teatro e Cinema, Ana viveu cerca de 20 anos em território continental (trabalhou para diversos grupos como a Companhia Teatral do Chiado, Teatro Regional da Serra do Montemuro ou a ESTE - Estação Teatral do Fundão) e consolidou a ideia de que "há há muitas maneiras de chegar ao público, temos de perceber que para muita gente entrar num teatro ou mesmo num auditório é intimidatório e caro. Assim sendo, temos de encontrar estratégias para nos aproximarmos das pessoas." Quando regressou à sua cidade natal, Angra do Heroísmo, sentiu que chegara o momento de desatar o novelo das histórias e "tomar a rua de assalto"..Nesta segunda edição da Rua Direita, estas histórias tiveram como palco lugares patrimonialmente relevantes (como a Alfândega ou o posto de Turismo, em tempos o palácio dos Corte-Reais, capitães donatários da ilha) ou em lojas cheias de memórias como a Basílio Simões & Irmãos (onde se vende de tudo, desde bombons ao peso a ferramentas e giz) ou o Verdemaçã Café, que preserva a memória da antiga Casa dos Linhos, autêntica instituição da sociedade angrense ainda lembrada por muitos. De resto, foi aqui que Ana levou à cena a peça As medidas da Utopia, com interpretação da bailarina Diana Rosa, música de Derek Nisbet e design de figurinos de Sílvia Teixeira, em que os linhos de outrora servem de pano de fundo às transformações vividas pelas mulheres, da ilha e não só, ao longo do século XX..Mas houve muito mais neste Rua Direita: em Cartas de Exílio, Edmir Ribeiro, artista de hip-hop cabo-verdiano, evocou contos de imigração, emigração e exílio; acompanhado pelo violino de Derek Nisbet e interpretação de Carolina Raposo. Em Quando Ninguém Vê, Bianca Mendes e Helder Xavier protagonizaram uma comédia sobrenatural sobre histórias e memórias e em Uma lembrança de Água o bailarino e coreógrafo Romulus Neagu invocou o "fantasma" dos antigos moinhos de água dos Corte-Reais que abasteciam a cidade (e os navios que nela aportavam) com farinha e pão. Isto, para além das instalação visual Haiku, fotografias de família, da artista Laura Quinteiro Brasil , e da instalação sonora de Derek Nisbet, em que uma combinação de música original, fragmentos de entrevistas e os sons da cidade criam uma atmosfera própria. Em À La Minute, Ricardo Ávila e a sua marioneta Alfredo tiravam retratos, não sem antes fazerem um divertido mergulho na chamada crónica da vida alheia de outros tempos..A culminar, o espetáculo Varandas, com música de Derek Nisbet e João Félix, texto e direção Peter Cann e interpretação do Grupo do Teatro Alpendre e Matilha, da Cães do Mar. De uma janela para a outra, em menos de 10 minutos, vemos 500 anos de fantasmas reunidos para celebrar, brigar e zombar. A rua pára literalmente para assistir a tamanha troca de "mimos" e o trânsito espera pelo fim do espetáculo, sem demonstrações de impaciência..O dramaturgo e libretista Peter Cann, co-diretor artístico (com Ana Brun) deste Rua Direita, salienta esse bom acolhimento da cidade assim interrompida na sua rotina: "Os comerciantes consideram que isto é muito bom para eles, até porque as pessoas vão ficando por ali a ver o que se passa e, como viu, até o trânsito se porta bem, parece não se importar de esperar pelo fim do pequeno espetáculo nas varandas.".Inglês, da região de Liverpool e adepto assumido do clube do mesmo nome desde que, aos 7 anos, ia pela mão do pai a Anfield Road, Peter chegou à Terceira há 7 anos com o objetivo de realizar workshops de teatro, intrigado "com a ideia de que nos Açores há muitos músicos mas poucos atores, e os que há vão para o continente." Vinha de trabalhar com o grupo de Teatro de Montemuro e a ideia de teatro de proximidade era-lhe (e continua a ser) cara: "Em Inglaterra fiz muito trabalho com comunidades rurais e fiquei com esse gosto". De resto, as primeiras peças que viu em lojas foi precisamente no seu país de origem, onde essa era uma forma lúdica de revitalizar o comércio tradicional. "As pessoas gostam de peças curtas, passadas não em sala de espetáculos formais, mas em espaços que fazem parte da sua história familiar há gerações. Se isso ajudar essas lojas a manterem-se de porta aberta, preservando a sua identidade, melhor ainda.".O grande finale que é a peça De vez em quando, nas varandas da Rua Direita, é todo ele baseado em figuras que viveram na cidade e que ficaram na memória colectiva por qualquer razão particular, conta ainda Peter Cann: "A recolha de histórias é como uma bola de neve, cada uma que nos trazem remete para outra e assim sucessivamente. É um trabalho ilimitado numa cidade como Angra, onde durante muito tempo as pessoas, sentindo-se isoladas pela insularidade, tinham o ritual de contar histórias para passar o tempo"..Em 2023, espera-se, o novelo continuará a ser desatado, mas ainda com mais participantes. "A comunidade reagiu muito bem. Agora queremos envolver também os estudantes das escolas locais e pô-los a participar ativamente, não apenas como espectadores." Na ilha, a roda das histórias continua a girar..dnot@dn.pt
Veste fato de pirata e pode bem ser um dos marinheiros ingleses do Revenge, naufragado na baía de Angra quando enfrentava sozinho 53 galeões ao serviço do todo-poderoso Filipe II de Espanha, I de Portugal. Mas também há uma fidalga, trazendo no vestido as rendas da Flandres que a exibição do estatuto lhe impõe, e um fotógrafo à la minute, como os que por aqui andavam há 100 anos a fixar para a posterioridade o instante dum passeio de domingo. Estas e outras personagens, resgatadas à memória popular de Angra do Heroísmo, "voltaram à vida" nos dois primeiros fins-de-semana de julho, na segunda edição do Rua Direita, projeto de animação cultural da Cães do Mar, que cruza o teatro, as artes plásticas e visuais, a música e a performance..Na origem do nome do evento está o local que lhe serve de palco, desde cedo fulcral na vida da cidade, que a localização estratégica somada à brandura da baía, tornava apetecível às armadas de bandeiras diversas que cruzavam o Atlântico. Uma importância já notada no século XVI pelo micaelense Gaspar Frutuoso, que não tinha dúvidas em escrever em Saudades da Terra: "Todas as coisas necessárias há em muita abundância e se vendem pelas portas, e andam vendendo por toda a cidade, ao costume de Lisboa, exceto vinho e azeite, que somente se vende nas tavernas, e a carne nos açougues, com que fica parecendo, e é, uma Lisboa pequena"..A ligação a este passado tão cheio de histórias reais como de lendas "é um dos objetivos do Rua Direita", como nos diz a co-diretora artística Ana Brum, a cenógrafa que, em miúda, quis ser arqueóloga: "Para cada uma destas histórias fazemos entrevistas, ouvimos muitas pessoas, vamos a arquivos e bibliotecas, de tal maneira que as pessoas já nos procuram espontaneamente para nos contarem as histórias de pais e avós. Acaba por se tornar um trabalho de identidade.".Tudo começou com os dois diretores artísticos, Ana e o inglês Peter Caan, a quererem desenvolver um projeto artístico de proximidade com a população da Terceira, mas que só um financiamento nacional, através da Direção-Geral das Artes, permitiu concretizar com a qualidade desejada: "A primeira edição, em 2021, correu muito bem, com um grande envolvimento e entusiasmo dos comerciantes locais, o que nos deu fôlego para continuarmos." Formada pela Escola Superior de Teatro e Cinema, Ana viveu cerca de 20 anos em território continental (trabalhou para diversos grupos como a Companhia Teatral do Chiado, Teatro Regional da Serra do Montemuro ou a ESTE - Estação Teatral do Fundão) e consolidou a ideia de que "há há muitas maneiras de chegar ao público, temos de perceber que para muita gente entrar num teatro ou mesmo num auditório é intimidatório e caro. Assim sendo, temos de encontrar estratégias para nos aproximarmos das pessoas." Quando regressou à sua cidade natal, Angra do Heroísmo, sentiu que chegara o momento de desatar o novelo das histórias e "tomar a rua de assalto"..Nesta segunda edição da Rua Direita, estas histórias tiveram como palco lugares patrimonialmente relevantes (como a Alfândega ou o posto de Turismo, em tempos o palácio dos Corte-Reais, capitães donatários da ilha) ou em lojas cheias de memórias como a Basílio Simões & Irmãos (onde se vende de tudo, desde bombons ao peso a ferramentas e giz) ou o Verdemaçã Café, que preserva a memória da antiga Casa dos Linhos, autêntica instituição da sociedade angrense ainda lembrada por muitos. De resto, foi aqui que Ana levou à cena a peça As medidas da Utopia, com interpretação da bailarina Diana Rosa, música de Derek Nisbet e design de figurinos de Sílvia Teixeira, em que os linhos de outrora servem de pano de fundo às transformações vividas pelas mulheres, da ilha e não só, ao longo do século XX..Mas houve muito mais neste Rua Direita: em Cartas de Exílio, Edmir Ribeiro, artista de hip-hop cabo-verdiano, evocou contos de imigração, emigração e exílio; acompanhado pelo violino de Derek Nisbet e interpretação de Carolina Raposo. Em Quando Ninguém Vê, Bianca Mendes e Helder Xavier protagonizaram uma comédia sobrenatural sobre histórias e memórias e em Uma lembrança de Água o bailarino e coreógrafo Romulus Neagu invocou o "fantasma" dos antigos moinhos de água dos Corte-Reais que abasteciam a cidade (e os navios que nela aportavam) com farinha e pão. Isto, para além das instalação visual Haiku, fotografias de família, da artista Laura Quinteiro Brasil , e da instalação sonora de Derek Nisbet, em que uma combinação de música original, fragmentos de entrevistas e os sons da cidade criam uma atmosfera própria. Em À La Minute, Ricardo Ávila e a sua marioneta Alfredo tiravam retratos, não sem antes fazerem um divertido mergulho na chamada crónica da vida alheia de outros tempos..A culminar, o espetáculo Varandas, com música de Derek Nisbet e João Félix, texto e direção Peter Cann e interpretação do Grupo do Teatro Alpendre e Matilha, da Cães do Mar. De uma janela para a outra, em menos de 10 minutos, vemos 500 anos de fantasmas reunidos para celebrar, brigar e zombar. A rua pára literalmente para assistir a tamanha troca de "mimos" e o trânsito espera pelo fim do espetáculo, sem demonstrações de impaciência..O dramaturgo e libretista Peter Cann, co-diretor artístico (com Ana Brun) deste Rua Direita, salienta esse bom acolhimento da cidade assim interrompida na sua rotina: "Os comerciantes consideram que isto é muito bom para eles, até porque as pessoas vão ficando por ali a ver o que se passa e, como viu, até o trânsito se porta bem, parece não se importar de esperar pelo fim do pequeno espetáculo nas varandas.".Inglês, da região de Liverpool e adepto assumido do clube do mesmo nome desde que, aos 7 anos, ia pela mão do pai a Anfield Road, Peter chegou à Terceira há 7 anos com o objetivo de realizar workshops de teatro, intrigado "com a ideia de que nos Açores há muitos músicos mas poucos atores, e os que há vão para o continente." Vinha de trabalhar com o grupo de Teatro de Montemuro e a ideia de teatro de proximidade era-lhe (e continua a ser) cara: "Em Inglaterra fiz muito trabalho com comunidades rurais e fiquei com esse gosto". De resto, as primeiras peças que viu em lojas foi precisamente no seu país de origem, onde essa era uma forma lúdica de revitalizar o comércio tradicional. "As pessoas gostam de peças curtas, passadas não em sala de espetáculos formais, mas em espaços que fazem parte da sua história familiar há gerações. Se isso ajudar essas lojas a manterem-se de porta aberta, preservando a sua identidade, melhor ainda.".O grande finale que é a peça De vez em quando, nas varandas da Rua Direita, é todo ele baseado em figuras que viveram na cidade e que ficaram na memória colectiva por qualquer razão particular, conta ainda Peter Cann: "A recolha de histórias é como uma bola de neve, cada uma que nos trazem remete para outra e assim sucessivamente. É um trabalho ilimitado numa cidade como Angra, onde durante muito tempo as pessoas, sentindo-se isoladas pela insularidade, tinham o ritual de contar histórias para passar o tempo"..Em 2023, espera-se, o novelo continuará a ser desatado, mas ainda com mais participantes. "A comunidade reagiu muito bem. Agora queremos envolver também os estudantes das escolas locais e pô-los a participar ativamente, não apenas como espectadores." Na ilha, a roda das histórias continua a girar..dnot@dn.pt