'Os 7 de Chicago': a (in)justiça americana no tribunal do cinema
Não há melhor cronista da história americana do que o próprio cinema americano. É um facto. A mais recente prova disso traz a assinatura de Aaron Sorkin - na sua segunda realização, depois de Jogo da Alta-Roda (2017) - e é um certeiro murro no estômago, já que o passado parece nunca deixar de estar na moda. Por outras palavras: Os 7 de Chicago vem lembrar que o espírito das manifestações e a violência policial que definiram recentemente uma realidade paralela à pandemia e ao ambiente da campanha eleitoral americana não são um dado novo na paisagem. A tragédia é perceber que tudo se repete e pouco se tem transformado no sistema. Pelo menos, substancialmente.
Sabe-se que Sorkin andava há mais de uma década a trabalhar o argumento, e a urgência do lançamento do filme nestes dias justifica-se pela ênfase do tema. Porém, importa não reduzir Os 7 de Chicago a um exclusivo propósito de mensagem ou recado político. Aqui na qualidade dupla de realizador e argumentista, o nova-iorquino que escreveu Uma Questão de Honra (1992), de Rob Reiner, a série Os Homens do Presidente, e foi oscarizado pela adaptação de A Rede Social (2010), de David Fincher, está no seu elemento. A saber, (quase) tudo se passa no interior de um tribunal de Chicago onde sete supostos líderes de um protesto violento contra a guerra do Vietname, que teve lugar na Convenção Nacional Democrata de 1968, são julgados à luz de uma dissimulada motivação política - foi o então recém-eleito governo de Nixon que deu luz verde ao avanço do processo.
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Nesse grupo de sete magníficos acusados de conspiração damos de caras com um notável Sacha Baron Cohen, na pele do ativista Abbie Hoffman, um dos dois Yippies (Youth International Party) que aligeiram o ar pesado das sessões de julgamento; Eddie Redmayne como Tom Hayden, um idealista cauteloso com consciência política aguçada (ele que se casaria mais tarde com Jane Fonda); e John Carroll Lynch como David Dellinger, o pacifista chefe de escuteiros que, a dada altura, deixa de conseguir conter o punho... Há ainda dois réus que não sabem muito bem porque estão ali, mas como diz um deles para o outro: "Isto são os Óscares das manifestações e é uma honra estar nomeado."
Um regozijo que contrasta fortemente com a condição do oitavo homem sentado no banco, o Pantera Negra Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II), que será um caso à parte, desde logo, porque o seu julgamento se viu anulado, mas antes disso foi alvo de uma sistemática atitude racista por parte do juiz. Na cena mais dolorosa do filme, ele chega a ser agredido, algemado e amordaçado dentro da própria instituição do tribunal, a mando dessa alta figura da justiça e perante os olhares impotentes.
Assim, embora grande parte da ação dramática se passe dentro das quatro paredes de uma sala de audiências, Os 7 de Chicago não se circunscreve apenas à dinâmica dos diálogos em que, de resto, Sorkin é mestre. A palavra tem também aqui a função de gatilho para flashbacks que reconstituem o que realmente aconteceu à porta da Convenção Democrata de 1968, cruzando-se imagens ficcionais com outras documentais que expõem o vigor da atuação policial, entre gás lacrimogéneo e bastonadas, sobre os manifestantes. Tudo muito na ordem do dia.
Finalmente, apetece dizer que a maior cartada do filme é Mark Rylance, o ator que interpreta o advogado de defesa "sem tretas" - o oposto de um engomado Joseph Gordon-Levitt, do lado da acusação - fazendo sobressair aquela humanidade e grandeza discretas que tanto se apreciaram em A Ponte dos Espiões (2015), de Steven Spielberg. Aí, recorde-se, ele era o espião soviético (papel que lhe valeu o Óscar) defendido pelo advogado Tom Hanks em plena Guerra Fria; agora é o homem que ajuda os ilustres rebeldes a enfrentar uma justiça manipulada... E é uma maravilha vê-lo responder com a expressão e o ritmo certos a cada momento, seguindo a energia e fluidez da realização de Sorkin. Quanto aos cartuchos humorísticos, esses ficam ao cuidado de Baron Cohen, capaz de conciliar traços moderados da sua comédia natural com um raro registo dramático. São atores que põem o sangue a correr na escrita cinematográfica liberal de Aaron Sorkin.
*** Bom