Os 10 dias que o assassino de Martin Luther King viveu em Lisboa
Ao escritor jamais se deve perguntar sobre como começou um livro porque pode estar a exigir-se a revelação de um segredo muitas vezes pode ser patético. Como não foi esse o caso de Como a Sombra que Passa, de Antonio Muñoz Molina, a questão até o interessa: "O romance nasce do facto do assassino de Martin Luther King ter estado em Lisboa durante dez dias em 1968." Molina explica também que este interesse não nasce do acaso: "Gosto de ler sobre os movimentos dos direitos civis e como vivi muito tempo nos Estados Unidos o caso de Luther King interessou-me a nível político e humano". A figura do dirigente é, para Molina, a de um líder dos mais inteligentes e eficazes.
Quanto ao protagonista deste romance, o assassino James Earl Ray, o interesse só surge ao ler Hellhound on His Trail, um livro sobre a morte de King. Foi a partir de então que deu início à sua "perseguição" a Ray, principalmente quando descobre que na rota de fuga estava "um pequeno detalhe" que tocou o autor espanhol: "Ninguém espera que o assassino de Martin Luther King passe dez dias em Lisboa!" Molina recorda que após a tragédia, James Earl Ray fugiu para o Canadá, onde comprou um bilhete de ida e volta para Londres: "Só que na manhã em que chegou à capital britânica decidiu, repentinamente, trocar o bilhete de regresso por uma viagem para Lisboa." Esta é a história, diz, "típica de um personagem muito americano, bastante enraizado numa cultura de pobreza no seu país, do racismo e da crueldade carcerária." Conclui: "Não tem nada a ver com Lisboa, é um estranho na cidade."
O romance, que esteve na short-list do prémio literário Man Booker deste ano, precisa de mais de 400 páginas para desbravar as intenções do assassino, mesmo que não consiga dar uma explicação para a razão que levou Ray a matar Luther King: "Ele queria ser um dos criminosos mais procurados - faz parte da vaidade humana -, tanto que todos os domingos assistia a um programa televisivo, Os dez criminosos mais procurados, para ver se estava na lista e ficava frustrado por nunca ter entrado, a não após matar Martin Luther King."
Tal como James Earl Ray, também Antonio Muñoz Molina teve uma surpresa com a revista norte-americana Life. O primeiro, porque ao lê-la durante o exílio lisboeta viu o seu rosto de criança exposto na capa; o segundo, porque ao ver no mesmo magazine a fotografia de uma mulher com quem Ray conviveu, em pose à frente ao Texas Bar no Cais do Sodré, sentiu o empurrão necessário para avançar definitivamente no romance: "Foi uma revolução para a minha imaginação. A mulher passa de uma personagem abstrata a uma muito concreta, ainda por cima um jornalista português [Vladimiro Nunes] tinha-a reencontrado décadas depois e entrevistara-a. Eu, que pensava no estereótipo de uma prostituta, ao ver a fotografia de Maria fiquei surpreso pois em nada o parecia." Esse confronto com a realidade é "uma lição para um escritor e é disso que o romance trata". Para Molina estava desfeito um mito: "Em jovem, o escritor pensa que a imaginação é muito superior à realidade, só que acaba por descobrir que a realidade é ainda mais rica do que qualquer imaginação."
O retrato de um fugitivo
Quem é exatamente o assassino que está fugido em Lisboa é a pergunta que se faz a Molina: "É um fugitivo que aterra em Lisboa sob nome e passaporte falsos, desconhecedor da cidade e sem poder confiar em ninguém." Para o escritor, "era muito atrativo tentar imaginar como um personagem destes vê a capital, uma cidade que para mim é muito importante e que conheço razoavelmente."
Essa curiosidade sobre a opinião que Ray tem da cidade foi a primeira questão de Molina quando leu em 2010 o livro sobre o assassino: "Foi impossível não escrever logo dez páginas de um esboço, mesmo que não o tenha continuado. Tinha dele a imagem de um homem vestido com dignidade e que saía da penumbra das arcadas da Praça do Comércio. Era como que um fotograma de um filme, e, a partir dessa imagem, saiu o livro todo."
Conseguir refazer os passos que Ray dá em Lisboa foi uma parte da ficção que, considera, "ficou muito próxima da realidade". Segundo Molina esse é um exercício muito interessante porque "existe muita informação sobre ele e bastante detalhada, porque ao ser detido em Londres [após deixar Lisboa], o FBI pôs-se em contacto com a PIDE e solicitou que se investigasse e entrevistasse todas as pessoas com quem se cruzou, o que se fez". Esse relatório está nos arquivos da agência norte-americana e o autor pôde consultá-lo: "O agente designado, Passo Coelho [o escritor engana-se, é Cunha Passo], fez uma investigação muito completa, que me permitiu perceber muita coisa." Nem todas, esclarece, mas "esse é o atrativo de escrever um romance: poder descrever o que se sabe realmente com um esforço da imaginação". Dá exemplos: "Quando ele se regista no hotel, ou estar com uma prostituta... sabemos mais menos em que sítios esteve e o mais entusiasmante é que alguns desses lugares continuam a existir: o Hotel Portugal ou o Texas Bar. E como foi em Lisboa que soube que tinha sido identificado como suspeito, pude fazer dele um homem que estava sempre a comprar jornais e revistas inglesas e americanas. Não sei o que terá sentido nesse momento, esse é a parte do meu trabalho enquanto romancista."
Autor e assassino em Lisboa
Ao ler-se Como a Sombra que Passa é fácil imaginar-se tanto James Earl Ray como Molina a perambular por Lisboa. Afinal, tanto um como o outro estão ligados à capital, e o escritor surge no livro com um relato biográfico que alterna com o do assassino: "Em 2012 vim a Lisboa para comemorar os anos do meu filho, o que me fez regressar ao livro com um outro ponto de vista: ligar a história de Ray com a minha." Fundir as duas histórias geraram muita dúvida: "Nunca estive certo de que era o melhor caminho alternar uma e outra história, mas seduzia-me querer contar como a ideia da literatura vai mudando ao longo da vida. Gostava da ideia e decidi manter dois relatos, apostando mais na parte de Ray.
O conhecimento de Molina sobre Lisboa facilitava a descrição da cidade onde Ray estava e também queria pensar sobre o lugar que a ficção tem na vida do leitor: "Uma particularidade que me atraía em Ray quando o comecei a conhecer melhor era o facto de ser alguém muito obcecado com a ficção. Era leitor de livros de espionagem e, numa fuga anterior da prisão, deparara-se com o problema de inventar uma identidade e um novo nome. Se o romancista tem de inventar nomes e vidas, ele também o fazia e inspirava-se nos romances que lia."
Não deixa de referir que a capacidade de invenção de Ray era tão grande que escreveu na prisão dois livros sobre o caso que apresentavam versões diferentes: "Era tão persuasivo que convenceu a família de Martin Luther King de que existia uma outra pessoa envolvida, Raoul, que era falso. Ou seja, não se consegue saber qual era a sua motivação, pois mentiu sempre sobre a autoria do atentado."
Antes de terminar a conversa com um novo morador de Lisboa desde o início deste ano, pergunta-se se gostaria de ter falado com o assassino durante a escrita: "Não, nem teria escrito o livro se ainda fosse vivo." E confessa que sonha frequentemente que James Earl Ray está preso numa cela que é uma divisão da sua própria casa.
Como a Sombra que Passa
Antonio Muñoz Molina
Editora Ponto de Fuga
432 páginas
PVP: 21,90 euros