Estamos sempre a voltar a Orson Welles. Ou porque alguém fez mais um documentário sobre ele, ou porque se trouxe à luz do dia algum dos seus filmes inacabados, como aconteceu com O Outro Lado do Vento (Netflix), em 2018, graças a um trabalho de montagem de Bob Murawski. A oportunidade de ver agora Hopper/Welles, apresentado no último Festival de Veneza, é oferecida pela mesma equipa que tirou dos cofres The Other Side of The Wind, o produtor Filip Jan Rymsza e o referido Murawski. Do que se trata? Uma conversa filmada em 1970, quando Dennis Hopper, já então um nome reconhecido por Easy Rider, e a rodar a sua segunda longa-metragem, The Last Movie (que seria um falhanço comercial), foi convidado a visitar Welles em Los Angeles, este que estava de regresso a Hollywood após um exílio europeu. A ideia era vir a usar excertos do discurso de Hopper no filme O Outro Lado do Vento. E a peça completa surge meio século depois como um documento único, um encontro entre duas gerações a divagar sobre a magia do cinema, a figura do realizador-deus, o público, a política, o sexo e a revolução, num preto e branco granulado que regista o tempo numa sequência de cigarros, goles de gin tónico e o bater das claquetes..Na verdade, quem divaga é Hopper, ao sabor da voz potente e desafiadora de Welles, que, sempre fora de campo, é como uma entidade divina cínica (e niilista) a espicaçar com perguntas um jovem idealista e romântico dado à prática da citação. Ele vai de O Último Ano em Marienbad de Resnais ao Viridiana de Buñuel, passa por A Noite de Antonioni, e a certa altura faz um desvio rápido numa canção de Bob Dylan. Welles pergunta quem é esse, e ficamos na dúvida se realmente não conhece ou está a assumir a pose sobranceira, neste caso, da personagem do realizador Jake Hannaford - o protagonista de O Outro Lado do Vento, que veio a ser interpretado por John Huston..O ilusionismo de Welles sente-se o tempo todo nesta conversa de copos que faz as delícias de qualquer cinéfilo, ou não fosse Hopper/Welles (em exibição nos dias 27 e 31, pelas 21h30, na Cinemateca) um daqueles documentos fascinantes que, pela informalidade, contêm algo da essência de dois pesos-pesados do cinema americano, em particular, do confronto entre a velha e a nova Hollywood. Com pouco mais de duas horas, e assinatura do próprio Welles, eis um dos momentos altos do Director"s Cut do IndieLisboa, secção dedicada aos filmes que se debruçam sobre a memória cinematográfica..É neste segmento da programação que se encontra também o documentário Lotte Eisner, Un Lieu, Nulle Part, um olhar conciso e importante sobre um vulto feminino algo esquecido: a jornalista alemã que se tornou braço-direito de Henri Langlois na Cinemateca Francesa, autora de estudos das obras de Fritz Lang e F.W. Murnau, tal como de L"Ecran démoniaque, célebre livro sobre o cinema expressionista alemão. Foi uma intelectual venerada por realizadores e cinéfilos, judia perseguida pelos nazis que se radicou em Paris e que, mais tarde, fez o elogio à geração de cineastas que restauraram uma ideia de cinematografia alemã, com Werner Herzog à cabeça. Era por ele que nutria um especial carinho, e Lotte Eisner, Un Lieu, Nulle Part está imbuído dessa dimensão afetiva..Dentro do imaginário português, o destaque vai para A Távola de Rocha, de Samuel Barbosa, um documentário em jeito de homenagem a Paulo Rocha, por alguém que trabalhou como seu assistente de realização. E ainda para Diálogos de Sombras, de Júlio Alves, um filme que nasceu da exposição Pedro Costa: Companhia (esteve em Serralves em 2018), explorando as afinidades artísticas do cineasta. O cinema é, afinal, uma conversa infinita.