Ordem dos Médicos. "Há mais de cem crianças cujas cirurgias foram adiadas"
Há mais de duas semanas que os enfermeiros dos blocos operatórios estão em greve e o impacto que este protesto está a ter suscita "muita preocupação" por parte da Ordem dos Médicos (OM). "Mais de 50% das cirurgias estão canceladas", conta ao DN Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da OM, que esteve nesta segunda-feira na reunião com os diretores clínicos dos cinco hospitais onde decorre a greve e na qual esteve também o bastonário, Miguel Guimarães. Em duas semanas de greve dos enfermeiros aos blocos operatórios já foram adiadas cerca de 5000 cirurgias, segundo avançou na quinta-feira fonte sindical à agência Lusa.
"Há mais de cem crianças cujas cirurgias foram adiadas", apontou Alexandre Valentim Lourenço, depois de se ter reunido com os diretores clínicos de cinco centros hospitalares onde decorre a paralisação: Centro Hospitalar de São João (Porto), Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Centro Hospitalar Lisboa Norte (que integra o Hospital de Santa Maria) e Centro Hospitalar de Setúbal.
"Apesar de terem sido feitas cirurgias urgentes, temos de perceber que uma criança não é propriamente um adulto e há repercussões na criança que vão além de a doença ser ou não um cancro", alerta. Para o dirigente da OM, a necessidade de cirurgia tem uma grande repercussão numa criança que é "completamente diferente" num adulto, sobretudo a nível psicológico. "Estar à espera dois meses para ser operado é muito pior numa criança do que num adulto. E há repercussões na sua atividade escolar", argumenta, referindo-se ao facto de o adiamento de muitas cirurgias programadas poder fazer que as crianças percam o ano letivo. Está, por isso, em causa não só a doença, mas também a condição da criança, que faz parte de "um grupo desprotegido, desfavorecido e que tem de ser acarinhado".
Nesse sentido, Alexandre Valentim Lourenço faz um apelo: "Peço que haja bom senso para que não se afetem as famílias e as crianças que não têm culpa nenhuma."
Apesar dos efeitos da "greve cirúrgica", como foi denominada, "os diretores clínicos garantiram que têm dado resposta a todas as operações muito prioritárias ou urgentes". Há, no entanto, cirurgias de doentes prioritários que foram adiadas "porque nem todos conseguiram entrar nos chamados serviços mínimos", explicou nesta segunda-feira o bastonário da OM, Miguel Guimarães.
"Os doentes de urgência estão todos a ser operados por causa dos serviços mínimos, mas depois os serviços mínimos estabeleceram prioridades específicas que foram desenhadas a partir da portaria 153/2017. Deixam de fora a maior parte das doenças benignas e por isso às vezes há doenças que não são cancros, mas são muito urgentes ou prioritárias, e elas não são contempladas", explica Alexandre Valentim Lourenço.
Outro dos problemas suscitados por esta paralisação, que começou a 22 de novembro e está prevista terminar no final do mês, é que o que agora não é considerado um doente prioritário pode passar a ser nos próximos dias. "É que uma situação que pode caber numa definição de greve de três dias não é uma situação que cabe numa greve de 45 dias, porque um caso que hoje não é prioritário daqui a uma semana passa a ser. E esses não são contemplados", esclarece.
À pergunta "pode garantir que não haja doentes a morrer por causa da greve?", o bastonário da Ordem dos Médicos respondeu: "Não posso garantir isso. Não posso garantir que alguns doentes não possam ser prejudicados e de forma complexa", acrescentou, após a reunião com os diretores clínicos dos hospitais afetados pela greve.
Questionado sobre se tem informação de sequelas graves ou de pessoas em risco de vida como consequência da paralisação, Alexandre Valentim Loureiro diz: "Não sabemos exatamente o que vai acontecer daqui a seis meses. Imagine uma situação em que não se opera agora, atrasa o diagnóstico dois meses, se calhar ultrapassou uma boa terapêutica daqui a um mês ou dois. E há coisas que nós só vamos saber daqui a uns anos. São as situações mais complexas."
E dá um exemplo. "Imagine uma fratura que não é operada, porque não é prioritária inicialmente. Ao fim de um mês já devia ter sido prioritária há muito tempo. Há situações que continuam a evoluir e, não sendo prioritárias, deixam sequelas. Temos de zelar pela ausência de sequelas", afirma, sublinhando que tem sido feito tudo para minimizar os efeitos da greve, com os médicos a assinalar os casos mais complicados. Aliás, o bastonário dos médicos disse que, por exemplo, o Hospital de Santa Maria já transferiu alguns doentes prioritários para outras unidades hospitalares, como o Hospital de São José e o Hospital Beatriz Ângelo.
Mas há doentes com sequelas devido à greve? "Não posso dizer. Não os conheço", responde Alexandre Valentim Loureiro. Admite que "há determinadas situações em que podemos estar a aumentar o risco existente" devido à greve. "O que nós sabemos é que há doenças que podem continuar a progredir."
Se já há fragilidades e insuficiências no Serviço Nacional de Saúde, elas tornam-se mais evidentes com as greves. E dá mais um exemplo: "Com um descolamento de uma retina, deve ser-se operado em dias e, se passarem 15 dias, a pessoa pode ficar cega. Os médicos estão a avaliar todas essas situações e estão a apontar as necessidades. O que o bastonário disse é que não pode garantir que não haja um acidente. Também não podemos garantir que há", resume.
A Ordem dos Médicos já pediu uma atitude mais ativa em relação à greve que está a paralisar os blocos operatórios de cinco centros hospitalares. "Não vemos, da parte do Ministério da Saúde, uma solução para resolver estes casos prioritários. É esse apelo que lançamos ao Ministério da Saúde", disse na sexta-feira ao DN o bastonário da Ordem dos Médicos.
Para o presidente do Conselho Regional do Sul da OM, o governo devia "avaliar com mais latitude a lista de prioridades". "Por exemplo, excluir as crianças da lista de pessoas a quem é recusada a cirurgia", afirma. Devia também colocar em prática mecanismos de modo a facilitar a transferência de doentes para outras unidades do SNS.
Ana Rita Cavaco defende a greve dos enfermeiros aos blocos operatórios com a garantia de que os profissionais estão a "trabalhar em exaustão". A bastonária da Ordem dos Enfermeiros admite que as mortes evitáveis possam subir, mas sublinha que já acontecem há muito tempo "por incumprimento do número mínimo de enfermeiros".
"Estamos a falar de mortes evitáveis que acontecem todos os dias. E são estudos internacionais e nacionais que nos dizem que por cada doente a mais por enfermeiro a taxa de mortalidade nos hospitais aumenta", afirma a bastonária ao DN. E acrescenta: "Ora, se a Ordem tem denunciado ao longo destes três anos situações em que está um enfermeiro para 40 doentes, é evidente que já morreu muita gente cujas mortes podiam ter sido evitadas."
Aquela responsável lembra ainda uma auditoria do Tribunal de Contas (TC), do ano passado, relativamente às listas de espera, que revelou que morreram mais de duas mil pessoas sem resposta dos hospitais. "Portugal é dos países da OCDE com menor número de enfermeiros por mil habitantes", recordou.
Ana Rita Cavaco garante que os enfermeiros estão a ir além dos serviços mínimos estipulados, numa greve que está marcada até final do mês. "Há blocos operatórios que não estão a ser preenchidos, não é porque os enfermeiros não estão lá, é porque não há cirurgiões", garante.
Sobre as condições profissionais dos enfermeiros, afirma que são péssimas: "Há situações em que os enfermeiros desmaiam nos blocos operatórios. Isto é que oferece segurança às pessoas? Não me parece! Um enfermeiro pode cuidar de 40 pessoas?"
Nesta terça-feira, Ana Rita Cavaco reúne-se com os dois sindicatos que decretaram a greve, os cinco enfermeiros diretores e o movimento dos enfermeiros da greve às cirurgias para "ver o que estão a planear fazer". Ou seja, se prolongam a greve para lá do final do mês.
Colocada de parte está a possibilidade de os médicos operarem sem enfermeiros para se minimizar o impacto da greve. "Não faz sentido nenhum. Os médicos trabalham em equipa e o trabalho em equipa é fundamental. Não estamos numa situação de catástrofe ou que tenha sido declarado estado de emergência", argumentou o bastonário da OM.
Também a requisição civil não está, para já, nos planos, considerando a ministra da Saúde, na sexta-feira, que essa é uma "opção extrema". Marta Temido garantiu que o que se procura fazer, "dentro desta circunstância, que é muito penosa, sobretudo para os utentes", é "encontrar soluções dentro do SNS" para o problema. Tal como a Ordem dos Médicos, a titular da pasta da Saúde defende que os hospitais devem divulgar a lista das cirurgias que têm sido adiadas.
"Uma divulgação daquilo que é o prejuízo desta greve é um elemento absolutamente essencial para que os portugueses compreendam o que se está a passar, que é uma greve extraordinariamente agressiva, precedida por uma proposta que respondia à maioria das reivindicações dos enfermeiros", referiu Marta Temido.
A greve dos enfermeiros dos blocos operatórios às cirurgias programadas foi convocada por duas estruturas sindicais, o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) e a Associação Sindical Portuguesa de Enfermeiros (ASPE), embora o protesto tenha partido de um movimento de enfermeiros que lançou um fundo aberto ao público que recolheu mais de 360 mil euros para compensar os colegas que aderirem à paralisação. O movimento denomina a paralisação como "greve cirúrgica".
A greve prolongada dos enfermeiros nos principais blocos cirúrgicos dos hospitais públicos começou por ser convocada para o período de 8 de novembro a 31 de dezembro pelos sindicatos Sindepor e ASPE, mas foi entretanto desconvocada por terem surgido dúvidas sobre a legalidade da mesma. Perante a polémica relacionada com o prazo em que a greve foi convocada, os dois sindicatos optaram por lançar um novo pré-aviso para o período de 22 de novembro a 31 de dezembro.
Com o fundo social, os enfermeiros que aderirem à greve deverão receber 42 euros por cada dia de paralisação. Sobre a criação da campanha de crowdfunding, Catarina Barbosa, uma das promotoras, disse ao DN que, "quando os enfermeiros fazem greve e não asseguram serviços mínimos, perdem a totalidade do vencimento desse dia". Como se trata de uma greve por tempo prolongado, este fundo pretende ajudar os enfermeiros que adiram à paralisação.
O grupo promotor da iniciativa recorda que os enfermeiros "não têm carreira digna", não progridem "há mais de 13 anos" e têm vencimentos baixos para licenciados. Lembram que os enfermeiros levam para casa menos de mil euros líquidos por mês e que cumprem muitas horas extraordinárias que não lhes são pagas.
Os enfermeiros reivindicam ainda "a valorização económica do trabalho" e a sua dignificação, nomeadamente com o reconhecimento da categoria de enfermeiro especialista e uma categoria na área da gestão, "o reconhecimento da penosidade da profissão", através da compensação de quem trabalha por turnos, e a reposição dos critérios para a aposentação com 35 anos de serviço e 57 de idade.
A greve dos enfermeiros cancelou cerca de cinco mil cirurgias, afirmou à Lusa fonte sindical, na passada quinta-feira, quando tinham decorrido duas semanas de protesto. Carlos Ramalho, presidente do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor), fazia um balanço "bastante positivo". "Continuam a ser diariamente adiadas ou desprogramadas cerca de 500 cirurgias e os colegas continuam a aderir com muita força e continuam empenhados nesta luta até quando for necessário", vincou.
Questionado sobre o alerta lançado na quarta-feira pela Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares de que há doentes em situações graves que estão a ver as cirurgias adiadas devido à greve, Carlos Ramalho afirmou que essa responsabilidade não pode ser atribuída nem aos enfermeiros nem aos sindicatos.
"Nós temos consciência de que esta greve causa prejuízos", mas os serviços mínimos estão a ser assegurados e todas as cirurgias "urgentes e inadiáveis" estão a ser executadas e "aquelas que possam eventualmente não ter sido executadas é por má gestão dos tempos operatórios", afirmou o sindicalista à Lusa. "Temos conhecimento de blocos operatórios que têm tempos operatórios disponíveis e que não estão a ser utilizados por má gestão e isso não é responsabilidade nem dos enfermeiros nem dos sindicatos", sustentou.
Com Lusa, Paula Sá, Susete Francisco e Joana Capucho