Onde almoça quem não pode ficar em casa? E fazer as suas necessidades?

Apesar de muita coisa estar fechada, há quem nunca tenha deixado de fazer o seu trabalho, nomeadamente nos transportes, manutenção de equipamentos, entregas de correspondência e cuidados de saúde. Andam na rua e sem uma porta aberta a quem recorrer.
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O país está há mês e meio em confinamento geral, tendo sido os restaurantes, cafés e afins os primeiros a fechar. O que significa que quem trabalha, literalmente, na rua tenha grandes dificuldades em fazer as suas refeições. É o caso de um motorista de pesados, um carteiro, um técnico de informática, um taxista e um enfermeiro, profissionais com quem o DN falou. As queixas destes trabalhadores não se ficam pela dificuldade em fazer uma refeição decente, englobam outras coisas muito simples, como beber um café ou ir a uma casa de banho. Situações que podem não passar pela cabeça de quem tem alternativas ao confinamento.

As restrições máximas à circulação entraram em vigor a 15 de janeiro, quando os estabelecimentos de restauração e similares voltaram a funcionar exclusivamente para entregas ao domicílio (delivery) ou take-away. Limitações que foram reforçadas a 22, com mais restrições, entre outras a proibição de vendas de bens ao postigo. No caso de cafés e restaurantes só é permitida a venda de produtos embalados e sem bebidas.

Muitos profissionais nunca deixaram de trabalhar, nem no primeiro estado de emergência, iniciado em março, quando o país parou literalmente. Mas se, então, ainda podiam comprar um refrigerante ou um café em regime de take-away, agora não o podem fazer. E podem comprar comida embalada ou trazer de casa, mas não têm uma mesa onde fazer a refeição, acabando por fazer opções bem mais simples, como as sandes. E, como dizia o enfermeiro William Rodrigues, não é almoçar ou jantar. "É meter qualquer coisa no estômago." Está na linha da frente no combate à pandemia e, muitas vezes, combateu o stress da profissão à mesa. Agora, faz refeições instantâneas quando não tem tempo para ir a casa.

Já o motorista de pesados António Costa, que sai de Portugal e passa por Espanha e França até chegar à Alemanha, onde vai buscar a mercadoria, sente que tem piores condições no seu país. E os problemas agravaram-se com a pandemia. "O governo devia dar mais atenção aos motoristas. Em Espanha, França, Alemanha, é tudo mais barato, temos bons equipamentos, podemos tomar um banho nas áreas de serviço sem pagar. E fazem 30% de desconto, aliás, também os restaurantes fazem desconto aos routiers [camionistas]. Em Portugal, é uma desgraça, tudo muito caro."

O carteiro António Pedro Carvalho tem, agora, menos trabalho do que no anterior confinamento. "Nunca parámos mas, desta vez, temos uma vantagem, não entregamos as encomendas, só as cobradas no destino. Na primeira fase, tinha umas 30 encomendas por dia, agora tenho uma ou duas." O que está pior é não ter um sítio para comer qualquer coisa, sobretudo para beber um café.

A falta de café é um problema geral para quem não pode trabalhar em casa, como acontece com o técnico de informática Marco Galinha, que faz a manutenção das caixas de multibanco (ATM). "Começamos cedo e este é um trabalho muito cansativo, a andar sempre de um lado para outro, e é isolado. Bebia dois a três cafés por dia, ver-me privado disso é muito complicado."

Outro problema que levanta é o mesmo de todos os que têm de comprar comida ao postigo e não podem fazê-la acompanhar-se de uma bebida. Acabam por ir buscar as bebidas a uma loja alimentar e fazem a refeição no carro, ou seja, só traz mais trabalho.

Por último, a falta de casas de banho num país onde não abundam estas infraestruturas públicas. Não há espaços comerciais abertos a que possam recorrer, a não ser as bombas de serviço e um ou outro centro comercial. E, como diz o taxista Rodrigo Dias, "são coisas de que não nos apercebemos no nosso dia-a-dia, quando está tudo aberto".

Tem 68 anos, uma boa idade para se reformar, mas são 40 anos de estrada e não se imagina sem ser agarrado ao volante de um camião. É motorista da Cargolog, em Matosinhos, com carregamentos ao serviço da Volkswagen, circulando entre Portugal e a Alemanha. Numa destas quintas-feiras, regressa da Alemanha, faz uma paragem na fronteira de Caia (Elvas) e só chegará a casa no dia seguinte: nove dias na estrada. Muitos pequenos-almoços, almoços e jantares, sem um restaurante ou café que lhe abra as portas, nem para beber "um cafezinho". Come na cabina do camião, onde cabe a condução, mas também o quarto e a cozinha.

"No verão, dá para fazer a comida na rua, embora eu ande com um atrelado e não possa trazer nada lá atrás. No inverno, não. Nesta viagem, apanhei muita neve. Dormi junto à fábrica da Volkswagen de Wolsburg, estavam 12 graus negativos. Às vezes, ainda nos juntávamos para ir ao restaurante, mas está tudo fechado. Sei que há restaurantes em Espanha que só abrem para os motoristas, mas é mais seguro trazer a comida de casa e comer no camião. Trago 18 refeições e 18 caixas com sopa, depois aqueço no micro-ondas ", diz António Costa.

O atrelado é a sua casa. Tem o frigorífico/congelador atrás dos bancos e ao lado da cama; por cima do retrovisor, está o micro-ondas. Deixou a Alemanha com a mercadoria na terça-feira, vai descarregá-la na sexta à Autoeuropa, em Palmela, onde prende outro reboque, que vai deixar no porto de Leixões. Regressa a casa, Matosinhos, e volta a sair na quarta.

São 14h30 e António Pedro Carvalho termina um trabalho que iniciou às 06h00. É carteiro e começou por separar a correspondência numa estação dos CTT antes de iniciar a distribuição às 10h00. Começa na Rua de Santo António à Estrela e termina na Ferreira Borges, em Campo de Ourique. Abraçou a profissão há cinco anos, tem 42, gosta de andar na rua e cumprimentar aqueles com quem se cruza, sempre em passo acelerado para despachar serviço. E até as refeições são rápidas: uma bifana, um prego ou uma sopa ao balcão. Agora, não pode.

"Se me sentar à mesa, são 40 minutos que estou a atrasar o serviço. Com o confinamento, não se pode comer, nem sequer beber um café, eu levanto-me muito cedo. Nem podemos ir à casa de banho, há um outro estabelecimento que facilita, mas muitos não o fazem. Tem sido complicado, tenho de comer na rua e não o posso fazer a andar. É um problema", lamenta António Pedro Carvalho.

Depende da rua para tudo, a estação dos CTT em Campo de Ourique não permite que aí faça uma refeição, mesmo trazida de casa, apenas o deixam utilizar a casa de banho. Não pode sentar-se num estabelecimento, nem sequer num banco de jardim. É ao ar livre que trabalha e come.

António trouxe dois hambúrgueres e um termo com Coca-Cola de casa. Terminado o serviço, não lhe resta outro solução a não ser sentar-se nas escadas de um prédio para comer. O carro está longe, na Rua de Santo António à Estrela, e ele mora na Ajuda. Regressar a casa significaria que só iria almoçar lá para as 16h00.

O carro é o escritório de Marco Galinha, 38 anos, um espaço móvel e de onde é chamado sempre que há que fazer a manutenção de uma caixa multibanco em Lisboa. "Moro em Vale de Figueira (Loures) e faço toda a cidade, sempre de um lado para o outro, não tenho qualquer hipótese de ir a casa almoçar", justifica.

Antes dos confinamentos e sempre que era possível, comia num restaurante ou café , normalmente perto dos bancos onde costuma verificar os ATM, nas Telheiras ou na Baixa. Há um mês que anda a arranjar alternativas ao comer de faca e garfo, e que não variam muito. Muitas sandes ou saladas compradas no Pingo Doce, também a bebida, o que não pode fazer num take-away. "Acho que engordei, desloco-me no carro, faço as refeições no carro, a mobilidade é muito reduzida", revela.

Marco está no McDrive de Telheiras, onde comprou um menu de hambúrguer em andamento e, depois, estacionou o carro para fazer a refeição. "Já não vinha aqui há duas semanas, é o mais rápido e prático. O problema é que não servem bebidas, nem sequer uma água, não faz sentido. Se encomendar uma refeição e que até pode ser para aqui, já traz bebida. Acabei por comprar um refrigerante no supermercado. Estava habituado a beber dois a três cafés por dia e agora não posso, faz-me muita diferença. A casa de banho é outro problema, fui às bombas de gasolina, mas estava muita gente", protesta Marco Galinha, para concluir: "Quando definiram as medidas, deviam pensar em quem trabalha na rua."

O serviço não é muito, mas a ficar em casa não se arranja nenhum cliente. Rodrigo Dias, 54 anos, motorista de táxi há 34, conversa com outros colegas, numa praça de Telheiras. Está quase a fazer quatro horas que o primeiro da fila está parado. Ainda não são 12h00 e há quem já pense em pegar no carro para ir a casa almoçar. Não é opção para Rodrigo que mora na Venda do Pinheiro. Logo que a fome aperta, senta-se no carro e "come qualquer coisa". Umas sandes e peças de fruta que traz de casa.

"Se não fosse o confinamento, iria almoçar com dois ou três colegas a algum restaurante de Alvalade ou a Telheiras. Por vezes, aos sábados, juntávamo-nos e fazíamos uma almoçarada. Agora, com tudo fechado, é muito complicado para quem tem de comer e não vive perto do trabalho. Também não há muitos serviços e há quem faça as refeições em casa, o que não faziam antes. Mas eu moro longe, não tenho qualquer hipótese", argumenta Rodrigo.

O movimento em toda a Lisboa é pouco, particularmente difícil para os taxistas quando muitos dos possíveis clientes estão em teletrabalho. Para quem espera nas praças de táxis em zonas residenciais e de escritórios, o problema maior não é a falta de turistas, mas o facto de os serviços e tudo o resto estarem fechados.

Além da falta de clientes, queixam-se das condições em que são obrigados a fazer as refeições ou outras necessidades diárias durante o confinamento "Não há nada aberto, nem sequer podemos beber um café, nem nas bombas de serviço. Queremos ir a uma casa de banho, até isso está complicado, há uma ou outra casa de banho pública, são muito poucas. Há dias, tive de ir ao centro comercial das Amoreiras", protesta Rodrigo Dias.

É enfermeiro a trabalhar numa unidade covid e com um part-time na área de medicina do trabalho. Está entre um trabalho e outro, almoça no McDrive das Telheiras. "Fica de passagem, moro em Odivelas e não tenho tempo para ir a casa. Mas, para mim, não é almoçar ou jantar, é colocar qualquer coisa no estômago, fazer uma refeição rápida", explica William Rodrigues, 34 anos.

Descreve, assim, as refeições que faz fora de casa porque não tem alternativa e é um amante da boa comida. "Um dos meus grandes prazeres é comer fora, adoro, almoçar ou jantar com colegas ou amigos, fazemos muitos convívios à volta da mesa, nesta altura, não é possível. Não se pode fazer uma refeição fora de casa decente", lamenta.

Sentado no carro no estacionamento da cadeia de fast-food, come uma salada e um hambúrguer, comprou a bebida numa bomba de gasolina. "Essa é outra questão, porque é que servem a refeição e não servem a bebida? Expliquei que precisava de uma água, disseram que não a podiam vender. A pandemia está a trazer-nos muitos entraves, grandes limitações a todos os níveis, o pior é que as pessoas não têm a noção do que muitos profissionais passam e continuam a fazer asneiras", critica. Praticamente desde o início da profissão que se divide entre dois trabalhos. "Faço uma média de 16 a 20 horas por dia, tenho este percurso há dez anos, mas, nesta fase da pandemia, qualquer turno é muito mais cansativo, não é tanto o cansaço físico mas o cansaço emocional", descreve William Rodrigues.

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