Oliver Stone revisita memórias do assassinato de John F. Kennedy
Não seria necessário a conjuntura pandémica para recordar o papel social do cinema face às convulsões do nosso mundo. O Festival de Cannes possui mesmo uma história meritória na divulgação de filmes apostados em lidar com os grandes temas políticos. Este ano, encontramos um reflexo disso mesmo na secção "Le Cinéma pour le Climat", dedicada a filmes sobre o aquecimento global do planeta - por exemplo, La Croisade, de Louis Garrel.
De que cruzada se trata? Pois bem, da aventura de um grupo de jovens, alguns ainda mal saídos da infância, empenhados em construir um movimento para a reconversão das paisagens desérticas do Saara, mobilizando apoios governamentais de todo o mundo. A história centra-se num desses jovens e nos seus pais (interpretados por Garrel e sua mulher, Laetitia Casta), evoluindo no sentido de uma fábula, frágil em termos argumentativos, cândida e tocante no plano dos afectos - foi o derradeiro filme em que trabalhou o grande argumentista Jean-Claude Carrière (falecido a 8 de fevereiro deste ano).
Certamente mais radical, e incomparavelmente mais perturbante, é o prodigioso filme assinado por Oliver Stone, exibido extra-competição. O título define o seu programa: JFK Revisited: Through the Looking Glass. Trata-se de passar para lá do espelho, relançando reflexões e argumentos em torno do assassinato do presidente John F. Kennedy (a 22 de novembro de 1963, na cidade de Dallas).
Claro a nova proposta de Stone não é alheia à sua própria abordagem dessa memória no filme JFK (1991), com Kevin Costner no papel do procurado Jim Garrison. A pontuar o novo filme surgem alguns breves extractos de JFK, não como mera evocação curricular, antes por causa de uma fundamental linha de argumentação: a noção de que Kennedy teria sido vítima de uma conspiração passou do domínio da "hipótese" para a claridade dos "factos".
Porquê? Acontece que, em anos recentes, foram colocados à disposição do público muitos documentos classificados como secretos na sequência da investigação apresentada, em 1964, pela Comissão Warren (do nome do seu presidente, o juiz Earl Warren). É sobre esses documentos que se debruça a "revisitação" de Stone, construindo uma narrativa que, na sua perspectiva, demonstra a impossibilidade de Lee Harvey Oswald ter sido um indivíduo isolado na preparação e execução da morte do assassinato. Muitos documentos (escritos e gravados) sustentam a ideia de que terá havido uma conspiração conduzida por elementos da CIA, partindo do pressuposto de que era imperioso "afastar" o presidente - figura nuclear nesse processo terá sido Allen Dulles, demitido do cargo de director da CIA, em 1961, pelo próprio Kennedy.
Entenda-se: JFK Revisited não é uma especulação "moral" sobre os inimigos que Kennedy foi coleccionando. O que é verdadeiramente impressionante (não poucas vezes assustador) é a precisão jornalística do filme de Stone. Estamos, de facto, perante uma complexa textura de depoimentos e documentos que, por fim, leva o realizador a detectar muitos problemas que o seu país continua a enfrentar. Dito de outro modo: este é também um filme de profundo amor pela América.