Olga morreu em Sarajevo há 25 anos: "A minha mãe é uma heroína"

Nora Hanic, filha de uma das duas primeiras vítimas do cerco da cidade, defende uma sociedade tolerante e multicultural
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"Antes, quando era mais nova e mais imatura, sentia-me zangada. Culpava-a por ela ter ido para aquela manifestação tendo duas crianças pequenas em casa. Agora, que também sou mãe, percebo-a e sei que faria o mesmo", explicou ao DN Nora Hanic. No dia 5 de abril de 1992, cerca de 100 mil habitantes de Sarajevo saíram à rua para tentar evitar a guerra. No meio dos cânticos pela paz ouviram-se tiros. Duas mulheres morreram. Suada Dilberovic, muçulmana, tinha 23 anos e estudava Medicina. Olga Sucic, dez anos mais velha, era católica e mãe de duas filhas. Uma delas tinha dois anos e meio e chamava-se Nora. Hoje tem 27.

Hoje cumprem-se 25 anos sobre a morte de Suada e Olga, consideradas as duas primeiras vítimas do cerco de Sarajevo. "Lembro-me bem desse dia. Foi impressionante ver os habitantes de Sarajevo, de todos os grupos étnicos, juntarem-se numa manifestação pela paz", recorda Ejup Ganic, então membro da presidência da Bósnia, em declarações ao DN. "Os disparos sobre Olga e Suada foram chocantes. Nunca esperei que pudesse acontecer tudo aquilo que aconteceu e que os civis de repente passassem a ser alvos. Fomos ingénuos e não acreditámos que o regime sérvio seria capaz de ir tão longe", continua o agora reitor da Universidade de Ciência e Tecnologia de Sarajevo.

Olga e Suada foram as primeiras de mais de 10 mil vítimas. A capital da Bósnia e Herzegovina viveu quase quatro anos cercada e diariamente bombardeada pelas tropas sérvio-bósnias. Foi só em fevereiro de 1996 - depois de em dezembro de 1995 terem sido assinados os Acordos de Dayton, que puseram fim à guerra - que as tropas comandadas pelo general sérvio Ratko Mladic retiraram definitivamente das colinas que envolvem a cidade.

Nora - que conversou com o DN em 2015 por ocasião de uma reportagem sobre os 20 anos do fim do conflito - não tem memórias da mãe. Mas quer honrar-lhe a memória: "Ela é um símbolo, uma heroína. Sinto que tenho o dever de fazer da minha vida algo que a deixasse orgulhosa e isso passa por, em todos os momentos, defender uma cidade multiétnica e tolerante".

Antes do conflito da década de 90, Sarajevo era um exemplo da diversidade cultural e da convivência entre religiões. A crença de cada um pouco ou nada importava. Católicos, ortodoxos e muçulmanos viviam lado a lado e festejavam as datas sagradas uns dos outros. Os casamentos mistos eram normais. Mas tudo mudou num instante.

Até que ponto, 25 anos volvidos, Sarajevo, apesar das muitas feridas ainda abertas, voltou a ser uma cidade sem divisões étnicas? "Trabalho com estudantes que nasceram durante e depois da guerra, que não têm memórias pessoais do que se passou, e vejo neles um desejo de ultrapassar o trauma do conflito", conta ao DN Amir Duranovic. "Ainda assim" - continua este professor de História da Universidade de Sarajevo - "por vezes oiço-os falar das histórias dos pais como se tivessem sido eles a vivê-las". Para Ejup Ganic, a tolerância ainda faz parte das impressões digitais da cidade: "Nos Balcãs, é talvez a região mais confortável para todos os grupos étnicos viverem em conjunto".

Selma Baltic, que celebra 27 anos no dia 11, faz parte dessa nova geração que não tem memória das bombas. Natural da cidade de Travnik, tinha dois anos quando começou a guerra na Bósnia. Hoje vive em Sarajevo, licenciou-se em Língua Inglesa e trabalha num projeto da União Europeia relacionado com o combate ao crime organizado. "Voltou a ser uma cidade feita de várias culturas. Esse processo começou com os esforços da comunidade internacional que veio para cá para ajudar na reconstrução. Muitos encontraram aqui um lar. Hoje, em Sarajevo, discutir a etnia de cada um não é algo que seja bem visto", afirma Selma.

No centro histórico da cidade, os sinos das igrejas ainda repicam ao mesmo tempo que os muezzins chamam para as orações nas mesquitas. "O meu vizinho é de uma religião e de uma etnia diferente da minha. Isso continua a ser frequente e normal em Sarajevo", sublinha Duranovic. Há dois anos, quando conversou com o DN, Nora partilhou uma visão menos cor de rosa da realidade: "As paixões ainda são muito exacerbadas e às vezes penso que a Bósnia é uma bomba relógio".

Na ponte Vrbranja - onde Olga e Suada caíram por terra - há uma placa de homenagem a ambas. Nem sempre foi assim. No início só aparecia o nome de Suada. "Isso mostra as divisões que se viviam naquela altura. Depois, por razões políticas, acrescentaram o nome da minha mãe. As duas foram enterradas no mesmo dia, mas as notícias só davam destaque à Suada". Apesar de dizer-se magoada com esta diferença de tratamento, Nora garante que não julga nem avalia os outros pela religião: "Para mim são todos iguais e todos sofrem da mesma maneira. Na minha família sempre houve gente de todas as religiões". Ela, filha de mãe católica e de pai ortodoxo, casou e teve um filho com um muçulmano. Falou com o DN numa esplanada junto ao Taslihan, antigas ruínas otomanas no centro da cidade velha. Num raio de menos de 250 metros erguem-se duas catedrais - a ortodoxa e a católica - várias mesquitas e, do outro lado do rio Miljacka, a sinagoga asquenaze.

"Em geral estou otimista em relação ao futuro. Acredito que Sarajevo voltará a ser conhecida como a "Jerusalém da Europa"", resume Ganic.

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