O primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed Ali, deu nesta quinta-feira ordem para o avanço das forças militares federais contra Mekelle, capital do estado semiautónomo de Tigray (ou Tigré), três semanas depois de ter lançado uma operação contra os líderes regionais que acusa de planearem uma revolta e no fim das 72 horas que lhes deu para deporem as armas.."A última porta de saída pacífica fechou-se por causa da arrogância dos líderes dissidentes", explicou Abiy, ao final do ultimato de 72 horas que foi rejeitado pelas autoridades regionais da Frente de Libertação do Povo de Tigray (TPLF, na sigla em inglês). O exército recebeu a ordem de "executar a última fase" da operação lançada em 4 de novembro, anunciou no Facebook..A guerra, que já causou centenas de mortos e milhares de deslocados, pode ser num canto do Corno de África, mas os seus tentáculos chegam muito mais longe - aos EUA e à China - e vão além das históricas disputas entre tigrínios, ahmaras ou oromos, como explicou ao DN o professor Manuel João Ramos, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL e especialista na região, que nesta sexta-feira é um dos intervenientes numa Lisbon Talk do Clube de Lisboa online sobre este tema, às 11.30.."Podemos ir até à Idade Média e vemos as coisas passarem-se da mesma forma. A tradição de confronto do princípio da centralização e do princípio da autonomia regional é a história da Etíópia", disse o professor, criticando a etnicização como categoria política cujo discurso acabou por levar à construção de um federalismo étnico no início da década de 1990, após a queda do regime comunista..O país divide-se agora em regiões semiautónomas com base nestas etnias. Há os tigrínios na região norte do Tigray - são uma minoria dentro da Etiópia (6% dos 110 milhões de habitantes), mas durante anos estiveram à frente do poder político e económico, além de militar porque a TPLF foi uma das forças contra a ditadura de Mengistu Haile Mariam..Na fronteira com o Tigray está Ahmara e os ahmaras, historicamente adversários - "os ahmara sempre estiveram à espera da queda dos tigrínios. É assim a história da Etiópia", explicou Manuel João Ramos, dizendo que eles "sempre se acharam os naturais líderes do país, por serem a fonte do poder real desde a Idade Média". Representam atualmente cerca de 27% da população..A maioria da população na Etiópia (35%) é oromo (concentram-se na região de Oromia), e entre eles está o primeiro-ministro. "Mas o conceito de oromo é um conceito totalmente fabricado, porque só são oromo no momento em que querem sê-lo, porque senão são sidama ou karrayyuu, ou isto, ou aquilo", referiu o investigador..Seja como for, os oromos "ressentiram-se da captura do poder e do aparelho político-económico pelos tigrínios e, em menor medida, pelos clientes ahmara e até pelos próprios clientes oromo. Era um sistema de clientelismo no topo do qual estavam os tigrínios". Algo que começou a entrar em queda com a morte do ex-presidente e depois primeiro-ministro, o tigrínio Meles Zenawi, em 2012..Zenawi era o líder da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF, na sigla em inglês), que juntava tigrínios, ahmara e oromos. "O poder da TPLF dificilmente podia sobreviver muito tempo à morte do Zenawi. Andou muito tempo em regime de zombie até que os confrontos explodiram e a partir de 2015 as coisas tornaram-se insustentáveis", indicou, e só acalmaram após a chegada de Abyi Ahmed Ali ao poder. Este acabou por dissolver a EPRDF e formar o próprio partido, mas os tigrínios não aceitaram e passaram na prática à oposição..A tensão desde então culminou com o recente conflito. "Ahmed Ali está a fazer aquilo que tem de fazer, que é centralizar o poder e ser absolutamente implacável com o inimigo. Porque a mão forte é uma fonte de legitimidade histórica na Etiópia. Porque é um estado central que sempre se consolidou pela força", explicou, indicando que o primeiro-ministro que já perdeu influência entre os oromos está a apoiar-se nos ahmara que, à primeira oportunidade, lhe vão tirar o tapete..A ideia é que esta seja uma "guerra-relâmpago", porque Ahmed Ali (que é especialista em mediação da paz mas "já despiu a capa de mediador e a capa de Nobel da Paz", prémio que conquistou em 2019) sabe que será a sua única oportunidade. Mas o investigador português duvida de que o consiga, mesmo se conquistar Mekelle, lembrando que os tigrínios resistiram durante anos ao regime comunista..E, no meio de tudo isto, os tentáculos deste conflito chegam muito mais longe..Etiópia: o Nobel da Paz e a guerra civil que ameaça o Corno de África."Não é possível imaginar que Ahmed Ali tenha feito isto sem ter carta-branca ou luz verde dos EUA", do presidente Donald Trump e do secretário de Estado Mike Pompeo. "Isto tem o efeito de enfraquecer a Etiópia, o que serve os interesses norte-americanos, porque o aliado importante na perspetiva de ambos é o Egito", acrescentou o investigador..O Egito e a Etiópia estão de costas voltadas por causa da Barragem do Grande Renascimento Etíope, no Nilo Azul. Este nasce nas montanhas etíopes e junta-se no Sudão ao Nilo Branco, que nasce no lago Vitória, no Uganda, acabando juntos por desaguar no Egito. "É absolutamente vital para o Egito que a água continue a fluir. A perda de uma gota de água significa uma revolta popular porque significa a fome, a perda das colheitas", disse Manuel João Ramos. Cerca de 90% dos cem milhões de egípcios vivem junto ao Nilo..O enchimento da barragem começou em finais de julho de 2020 e vai demorar anos. Mas, para o Egito, o projeto representa uma "ameaça existencial". Em outubro, Trump irritou a Etiópia quando disse que os egípcios iam "rebentar a barragem". Segundo o investigador do ISCTE-IUL, o presidente norte-americano acabou por dar também carta-branca ao Egito para fazer aquilo que o presidente Abdel al-Sissi quer fazer há muito tempo, que é bombardear a barragem..Manuel João Ramos refere ainda um outro aspeto do conflito. O facto de supostamente estarem a ser usados drones dos Emirados Árabes Unidos, a partir da base de Assab (na Eritreia) no apoio às forças etíopes.."Este é o plano Kushner [Jared Kushner, genro e conselheiro de Trump], a paz israelo-árabe e carta-branca à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos no Corno de África", indicou o investigador, falando numa "mudança histórica imensa" dos EUA que é dar-lhes "a legitimidade para intervir" na região..O próximo presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, vai herdar esta política regional de Trump, mas a dúvida de Manuel João Ramos é se terá interesse em recuar. Afinal, a jogada dos EUA até agora foi pensada como uma forma de contornar a influência da China..Durante anos, a Etiópia - e nomeadamente a TPLF de Zenawi - era vista como a aliada ocidental na guerra ao terror. Ter um inimigo externo era algo que permitia exteriorizar os problemas e os conflitos internos, explicou Manuel João Ramos, mencionando nomeadamente a Somália, onde as forças etíopes chegaram a entrar em 2006, numa operação muito impopular na Etiópia..O problema é que Zenawi começou também a perder o favor entre os norte-americanos, primeiro com George W. Bush e depois com Barack Obama e a TPLF acabou por se apoiar na China. "A Etiópia foi absolutamente fulcral para a entrada da China em África", contou o investigador do ISCTE-IUL.. "O setor sul da chamada Rota da Seda envolve precisamente o Quénia, a Etíópia e o Sudão do Sul. Ao delegar nos árabes o controlo, aquilo que os americanos estão a fazer é retirar aos chineses o controlo da região", acrescentou, lembrando a base chinesa que existe no Djibuti.."Tudo o que é telecomunicações, tudo o que é infraestruturas, tem tudo mão chinesa no Corno de África", lembrou Manuel João Ramos, sendo que estes permitem agora a Ahmed Ali ter o controlo sobre a população, através dos meios digitais. O professor contou que os seus conhecidos na Etiópia têm por exemplo receio de falar, sabendo que as suas comunicações estão a ser ouvidas, e que existe um bloqueio da informação que vem da região do Tigray, sendo impossível confirmar as informações..No meio de tudo isto, Ahmed tem rejeitado qualquer mediação externa, apelando à não intervenção nos assuntos internos do seu país. A União Africana - cuja sede é precisamente na Etiópia-- enviou entretanto três representantes para o país, os ex-presidentes Joaquim Chissano (Moçambique), Kgalema Motlanthe (África do Sul) e Ellen Sirleaf-Johnson (Libéria), mas estes não serão autorizados a ir a Tigray e o governo rejeitou a mediação..A União Europeia, através do chefe da diplomacia Josep Borrell, apelou à cessação de hostilidades e à cooperação com os enviados da União Africana, alertando para o facto de o conflito já estar a desestabilizar a região - milhares de refugiados já cruzaram a fronteira para o vizinho Sudão, também ele numa situação política e económica complicada..Manuel João Ramos lembra que países como a Alemanha ou a Itália sempre tiveram ligações à TPLF e que será interessante ver que posição tomam agora. "A União Europeia vai continuar na mesma conversa, é preciso mediação, é preciso evitar a expansão do conflito, mas não tem grande saída porque está entre os dois gigantes, os EUA e China", referiu.