O zoo humano de Demarcy-Mota

'Casimiro e Carolina', de Von Horváth, é a peça que o encenador luso-francês traz ao Festival de Almada.
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É na Festa da Cerveja em Munique, onde Hitler fez os seus primeiros discursos, que Casimiro e Carolina, amantes em ruptura, passeiam por entre uma multidão ruidosa e festiva, ignorando as catástrofes que se aproximam. Um zeppelin fá-los levantar os olhos para o céu e todos sonham em partir para outro lugar.

É com este momento de evasão que Emmanuel Demarcy-Mota, o luso-francês director do Théâtre de la Ville, inicia a sua encenação da peça que o autor alemão Odon von Horváth escreveu em 1931.

A obra que se estreia hoje no Teatro Nacional de São João, no Porto, estará quinta e sexta no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, no âmbito do Festival de Teatro de Almada.

Um confesso "apaixonado" pelas obras de escritores da Europa central, Demarcy-Mota, que já encenou Brecht, Ionesco, escolheu agora a obra de Von Horváth pelo "seu pessimismo melancólico, mas, sobretudo, pela lucidez com que ele olha o que acontece à sua volta e intui que está perante um mundo em transformação onde nada será como dantes".

Todos se juntam nesta festa outonal, ricos e pobres, poderosos e miseráveis, homens e mulheres. "É uma espécie de zoo, onde estão representadas todas as figuras sociais. Um lugar fechado dentro de um tempo que se fecha, todos solitários, todos em busca de algo", explica o encenador.

Casimiro fica sem emprego e a relação com Carolina não resiste a essa perda, porque ela quer mais da vida. Encontra num homem velho e poderoso a possibilidade da ascensão social que deseja.

"A ideia de transformação que atravessa esta peça é algo que me interessa muito em termos teatrais", conta Demarcy-Mota. "A transformação interior das pessoas, das formas de poder das relações entre elas, das sociedades, é uma constante. Não pertence ao passado. Está a acontecer agora, por isso é tão importante revisitar os autores que viveram e pensaram sobre estas mudanças."

E como coloca em palco a intemporalidade que vê nesta história? "Casimiro e Carolina é uma peça muito cinematográfica, tal como toda a escrita de Von Horváth. Estas personagens definem- -se na sua relação com o espaço exterior, daí a cenografia assentar numa máquina gigantesca e ameaçadora que evoca em simultâneo o frio e o quente, o antigo e o moderno, mas também a proximidade de um poder que esmaga todos os que não o seguem."

O espectáculo do encenador luso-português recupera ambiências do cinema expressionista alemão. Como o filme de Fritz Lang M. Matou, joga com projecções de luz e sons sobre um palco onde se movem 18 actores. Entre eles Élodie Bouchez (Carolina) e Thomas Durand (Casimiro).

Na feira dos desejos superficiais, Casimiro e Carolina perdem-se para sempre um do outro. Com este amor falhado como pano de fundo, Demarcy--Mota quer "mostrar a violência surda deste tempo, a bestialidade destas pessoas, a sua perda de valores". É a partir daqui que o encenador faz a ponte com a actualidade, "em que as pessoas vivem inseguras, com medo dos outros, inquietas, um cenário que leva à perda de valores ou a outros perigos maiores", conclui.

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