O Walk & Talk continua a agitar São Miguel
Os degraus da igreja matriz enchiam-se de famílias na noite amena de sábado. Sobre o palco instalado na Praça Gonçalo Velho Cabral atuava a banda local Brumas da Terra. Era a altura das Grandes Festas do Divino Espírito Santo em Ponta Delgada. "Minhas senhoras e meus senhores, assim damos por terminado o concerto desta noite. Antes de sairmos queria pedir uma grande salva de palmas para o divino Espírito Santo."
Algumas ruas acima, no efémero pavilhão em madeira projetado pelo Mezzo Atelier, casa sem paredes da oitava edição do Festival Walk & Talk, mesmo em frente ao Teatro Micaelense, Conan Osiris, recente nome sensação da música portuguesa, difícil de classificar, preparava-se para entrar em palco e assim fechar o arraial deste festival de arte pública.
Versos como "O meu problema é que eu adoro bolos" ou "Tu não tens celulite tens celulitite", saídos de uma paleta onde António Variações parece ser vizinho de Bollywood ou de funaná, faziam dançar os corpos que Amália, quase no fim, veio acalmar: "Amália pega em mim e leva-me para o mar", cantou Conan (Tiago Miranda), com João Reis Moreira a dançar, como habitualmente, ao seu lado.
É destes diálogos que se parece fazer o Walk & Talk, festival que termina no sábado, entre a história desta ilha e a vida que todos os dias nela corre, por um lado, e um olhar estrangeiro (não necessariamente de outro país), e contemporâneo, por outro. Veja-se a obra da britânica Navine Khan Dossos no muro do porto marítimo da cidade.
Pintado com bandeiras de sinalização, alfabeto marítimo internacional, legível aos olhos de quem o entender, ali está escrito o nome de Georgiana Leonard. Georgiana fez-se passar por homem para se poder tornar num marinheiro a bordo de um baleeiro Atlântico fora. Acabaria por ser desmascarada.
A obra de Nadine faz parte do circuito de arte pública desta edição do festival, com curadoria de Dani Admiss, que lhe chamou Assembling a moving Island (Construindo uma ilha em movimento é uma tradução possível).
Dali mesmo vê-se o edifício SolMar, centro comercial cuja construção foi votada numa assembleia popular que decorreu no Teatro Micaelense a 1 de julho de 1973.
"Ficámos obcecados com o espaço. É um conjunto arquitetónico estranho. A escala, a altura, demasiado grande para Ponta Delgada. É do pós-25 de abril, um símbolo de desejo de transição de uma vida rural para uma vida urbana, cosmopolita."
Além disso, continua Luís Silva, que com João Mourão assina a curadoria da exposição coletiva Untitled (How does it feel?), patente no quarto piso do edifício que tem ainda duas torres habitacionais, "[o projeto] foi escolhido para ser um centro comercial, lugar de desejo, de consumismo".
Os dois curadores, que juntos fundaram e dirigem a Kunsthalle Lissabon, escolheram para lugar de uma exposição, que tem o desejo como tema, aquele quarto piso, que estava a ser usado como armazém improvisado do centro comercial, e que também já foi um ginásio (daí as linhas amarelas no chão), mas nunca chegou a ser terminado.
A piscina, por exemplo, num terraço com uma vista privilegiada sobre o mar e a marina de Ponta Delgada, nunca foi acabada. Para chegarmos ao terraço é preciso passar uma porta onde dois papéis iguais previnem: "Por favor não abrem esta porta".
A piscina é agora uma piscina de lava, cor de laranja, pintada por Luís Lázaro Matos, que a usou também como anfiteatro num concerto que ali deu na inauguração da mostra, com o seu alterego musical Luís da Baviera.
Diogo Evangelista, André Romão, Joana Escoval ou Jonathas de Andrade são mais alguns dos nomes que integram esta exposição.
Jesse James, que com Sofia Carolina Botelho assume a direção artística do festival, explica que a organização se comprometeu com os proprietários a pintar a piscina de cinzento caso assim quisessem, mas espera que a obra se mantenha ali.
Membro da terceira geração de emigrantes açorianos no Canadá, o diretor do festival deve o seu nome, que partilha com o lendário fora-da-lei americano do século XIX, ao facto de o pai e a mãe não terem conseguido chegar a acordo, um queria Jesse, o outro queria James.
Sentados à volta de uma mesa no pavilhão do festival, os dois olham para trás. Quando surgiu a ideia, veio com uma peça só, de Vhils (Alexandre Farto). "Acabei numa reunião com o diretor regional da Juventude, então o Bruno Pacheco, que me disse: Mas porquê só um?" Foi assim, com um orçamento de 20 mil euros e uma primeira programação com vários nomes, que começou o festival. "Havia muito pouca coisa nessa altura."
Sofia só entrou na terceira edição, mas lembra-se bem da primeira exposição do festival. "Eu fui ver. Era fresco!" "Foi uma lufada de ar fresco na cidade, e gerou uma discussão de conversa de café. Lembro-me de as pessoas dizerem: "Estão a gastar dinheiro público nisto." Isto foi em 2011, em plena crise", recorda Jesse, salientando que o verbo em causa era "agitar": queriam agitar a ilha sísmica.
Nesta oitava edição, o orçamento foi de 170 mil euros, com apoio da DGArtes, em cujo concurso foram um dos vencedores. Em vez de expandirem a estrutura do festival, explica o diretor, optaram por pensar e pôr em prática "como melhorar e potenciar as condições de trabalho de toda a gente".
Sofia diz que a ideia em cada edição é que cada curador do circuito de arte pública venha "puxar a corda", levar o festival para a frente. "Antes os Açores apareciam na National Geographic, no quarto ano [de festival] aparecemos no New York Times", lembra Jesse James, evocando o artigo que o jornal americano dedicou ao festival em 2014.
Há muitas pistas para a mudança de que Jesse e Sofia falam. Uma delas está na Lagoa, no Brum Atelier, perto da Cerâmica Vieira, que naquela manhã estava cheia de turistas, a cuja presença os trabalhadores já estão de tal maneira habituados que, numa sala onde se pintam travessas, com uma gaiola de periquitos pendurada numa parede, logo nos dizem: "Pode entrar."
Beatriz Brum e João Miguel Ramos não viviam longe, mas só conheceram-se por causa do Walk & Talk, quando ambos ganharam o prémio Jovens Criadores. Agora dividem o espaço do Brum Atelier, por detrás da casa da avó dela, onde funcionava uma carpintaria que foi primeiro do seu avô e depois do seu pai.
Os arquitetos que põem "as mãos na massa"
Dali haveríamos de seguir para Vila Franca do Campo, onde encontramos o coletivo Camposaz, formado por portugueses e italianos, que trabalhavam no seu projeto em madeira. Quase todos são arquitetos, e também lá está Chloé, marceneira à frente do Atelier de São Vicente, em Lisboa.
Estão defronte do ilhéu de Vila Franca do Campo, com o Atlântico no meio, e no dia seguinte haveriam de começar a construção a que se propunham, que deverá estar pronta no dia 14, antes do festival. Quando ali chegaram, nesta semana, não sabiam nada acerca do que fariam. Apenas que tinham 10 dias para o fazer, e que a obra seria site specific. Nos primeiros três dias ficaram só a olhar, a pensar, a desenhar, a discutir. Um dos princípios do workshop é a improvisação, diz Mariella. "É como uma jam session."
Esta é a primeira vez que estão a usar a criptoméria, madeira que existe nos Açores como, de resto, no Japão ou na China. Normalmente trabalham com pinho ou casquinha branca, porque a maioria dos workshops foram feitos no norte de Itália. Algumas das obras que lá deixaram são agora camaleónicas, estão escondidas pela vegetação. "Fizemos construções lindíssimas que hoje nem se veem" diz, sem lamentar, Mariella, que antes dos Camposaz nunca tinha trabalhado com madeira.
Ao segundo dia naquele lugar, o grupo apanhou o barco e foi para o outro lado, olhar a ilha a partir do ilhéu. Perceberam que, à horizontalidade do que viam, iam contrapor a verticalidade de uma construção, inspirados pelas torres sineiras que se destacam da paisagem.
No começo pensaram construir nas rochas. "Torná-las mais acessíveis", diz Chloé. Mas o mar começou a aproximar-se. Na maqueta que está no chão quando os visitamos adivinham-se os jogos de perceção e os diferentes recortes de visão a que a obra convida o corpo. "Há espaços em que perdes a vista, outro que te eleva, outro pressiona-te", adianta Max.
Inês, outro dos oito elementos do grupo que encontramos, fala da importância deste projeto no que diz respeito ao "pôr as mãos na massa. Na universidade é tudo teórico, à frente do computador, com medidas". Aqui, aqueles que projetam a obra serão também os que a vão erguer.
Um jardim para 2100
No Parque Urbano de Ponta Delgada há agora, entre toda a vegetação, um canteiro feito para durar. Para sermos mais precisos, para durar (pelo menos) até 2100. Chama-se Declimatized e é o resultado dos trabalhos dos artistas Sasha Pohflepp e Chris Woebken com botânicos locais e investigadores climáticos. Entre as plantas escolhidas estão, por exemplo, o loureiro e a urze.
Pouco depois estamos em Santa Clara, junto ao mar e à grande quantidade de tetrápodes que por vezes o tentam travar. Junto a algumas das primeiras obras de arte pública do início do Walk & Talk está um dos núcleos de Atropelos, trabalho de Daniel Rourke e da brasileira Luiza Prado para esta edição, que, com as suas camadas, integra o circuito de arte pública do festival.
As camadas veem-se logo num cartaz que mostra o Padrão dos Descobrimentos, que encima um outro, da Cimeira dos Açores, de 2003, onde por cima foi escrito: "Não leve a mal mas quem descobriu o Brasil não foi Cabral".
Bar aberto
El Olvido, da guatemalteca Maya Saravia, é um bar, com flores de plástico a perfazer os centros das mesas, rodeadas de garrafas de cerveja vazias. Há uma televisão acesa, que obriga quem quer conversar a levantar a voz. Nela passam imagens de soldados a dançar, grandes explosões de guerra e, mais uma vez, a Cimeira dos Açores. Ouve-se George W. Bush usar várias vezes a mesma expressão: "serious consequences" ("sérias consequências"). Este é um bar que existe, de facto, na cidade da Guatemala.
Maya Saravia, durante a residência na ilha de São Miguel, percebeu que o traria para ali quando, no arquivo do Instituto Cultural de Ponta Delgada, se deparou com a edição do Correio dos Açores em que aquele jornal pôs na primeira página o golpe de Estado no seu país, que ocorreu em 1954.
Impressionada com o destaque que aquele acontecimento teve, apesar da distância que separa o país de São Miguel, foi ali mesmo que montou a sua exposição, naquela que é a mais antiga instituição cultural em funcionamento de Ponta Delgada, e que em breve fará 75 anos.
Há sete anos que o Instituto Cultural está na casa onde viveu o poeta da geração Orpheu Armando Côrtes-Rodrigues. Pedro Pascoal de Melo, que nos guia pela instituição, lembra-se de ser um miúdo a brincar naquela rua, e do poeta, e amigo de Fernando Pessoa, vir à janela ordenar que fizessem menos barulho, na sua voz de tabaco.
É na sala de livros reservados - entre os quais se conta, como o mais valioso, o Tratado de Anatomia do Andreas Vesalius, do século XVI - que nos mostra a digitalização do extenso arquivo fotográfico que está em curso, e que o tornará acessível a todos no site do instituto.
A certa altura vemos Alice Moderno, de quem a mãe de Pedro de Melo ainda se recorda, benfeitora e escritora, entre os documentos históricos. Pedro conta que estaria ligada ao movimento feminista, tal como a mulher com quem vivia - situação inusitada na primeira metade do século XX. Entre os álbuns de recortes de Alice Moderno estão os cartões dos hotéis por onde passava, as marcas dos seus charutos, e vários cartões-de-visita, entre eles o do escritor Émile Zola.
Até ao próximo sábado há visitas guiadas à exposição Untitled, passeios orientados pelo circuito de arte pública, um jantar coletivo na segunda-feira, a apresentação da Residência de Design e Artesanato de Miguel Flor na terça-feira, ou, para terminar, a festa de encerramento no último dia, com Voyagers e Flip + Tape. De resto, durante o ano sobra material suficiente do festival na ilha para cumprir aquilo que dita o seu nome: andar e falar.
A jornalista viajou a convite do Walk & Talk