O Ulisses de James Joyce
"History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake."
James Joyce, Ulysses
Este romance de James Joyce (1882-1941), publicado por Sylva Beach, em Paris (1922) - redigido em Trieste, Zurique e Paris, desde 1914 a 1921, como se lê na derradeira linha do original -, reformula de modo portentoso e irreverente o famoso poema grego Odisseia de Homero contando o regresso ao lar do rei de Ítaca, depois de muitos anos de errância do herói Odysseus (Ulisses) após a guerra de Tróia, estando este herói retido sete anos na ilha Ogígia pela ninfa Calipso.
Na versão de Joyce - a acção decorre toda durante um só dia, em Dublin, 16 de Junho de 1904 - o famoso "Bloomsday" que seria depois celebrado pelos devotos leitores do livro -, o novo Ulisses é um judeu, angariador de publicidade, Leopold Bloom, marido de Molly Bloom, sendo esta a equivalente da Penélope grega, cujo extenso monólogo amoroso, marcadamente erótico, texto desprovido de qualquer pontuação, constitui o final do livro (1) -, assim como todos os demais personagens reencarnam de modo habilidoso e deveras imaginativo o resto do elenco homérico, tal com o truculento e fanático "Cidadão"(2) - assim é designado na obra do séc.XX -, sendo agora este novo Polifemo um declamador apoplético e anti-semita, dono dum bar em Dublin, o qual invectiva e ameaça Leopold, acabando por lhe arremessar um lata de biscoitos quando este abandona a taverna depois duma discussão azeda em torno do povo judaico, perdendo-se a lata na rua, não atingindo o judeu fugitivo, enquanto o Cidadão irlandês grita ao seu cachorro que o persiga, tentativa de agressão que é a réplica dos pedregulhos de Polifemo lançados contra Ulisses quando este logra escapar com os seus companheiros, da caverna onde estavam sequestrados
Joyce nasceu em 2-II-1882 num subúrbio de Dublin, mudando depois a família para a Brighton Square West, na zona suburbana de Ratggar. O jovem James fez estudos primários numa escola jesuíta e, mais tarde, residindo já em Dublin, noutra escola católica, onde se tornou um estudante premiado, seguindo depois para uma universidade também dos jesuítas, embora atravessasse uma fase de descrença que o acompanharia sempre, tendo abandonado a fé católica, embora se licenciasse na Universidade católica em línguas modernas, em 1902, altura em que parte para Paris, com o intuito de estudar medicina, regressando à Irlanda , em 1903, por causa da doença da mãe, que faleceria em Agosto desse ano. Ensinou numa escola irlandesa e em 10 de Junho de 1904 conheceu Nora Barnacle, a mulher com a qual viveria o resto da sua vida.
O casal abandona a Irlanda em Outubro, fixando-se em Pola, na Croácia, donde partiriam para Trieste, ensinando James, desde 1905, na Berlitz School desta terra, ao mesmo tempo que começa a escrever o seu livro de contos Dubliners. Em 1905 nasce-lhes o primeiro filho, em 1906 o casal muda-se para Roma, esperando viver mais desafogadamente, já que Joyce trabalha num banco, embora acabem por voltar para Trieste. Em 1907 Nora tem a sua segunda filha, Lúcia. James edita nesse ano o seu primeiro livro, Música de Câmara. Entre 1909 e 1912, Nora e James visitam a Irlanda.
Em 1914, Joyce inicia a escrita de Ulysses. O começo da guerra leva-os a partirem para a Suíça, em 1915. E em 1920 seguem finalmente para Paris, cidade na qual viveriam os 20 anos seguintes. Em 1921 publicou-se, graças a Sylvia Beach, dona duma livraria na capital francesa, o Ulisses.
Esta obra de Joyce está carregada de inventividade, ousadias eróticas e experimentalismos de linguagem, como se esta fosse um material tão plástico como a pintura ou a escultura, o que havia de lhe atrair a cólera de sectores tradicionalistas da opinião pública, expressa em diversos processos por ultraje, como sucedeu com o processo que lhe intentaram na América do Norte e que se traduziu na sentença do juiz John M. Woolsey, em 6 de Dezembro de 1933, na qual se afirmava que Joyce, ao escrever essa obra e apesar da sua invulgar franqueza, não procurara lançar nela um olhar lúbrico, pelo que não se tratava duma obra pornográfica, mas antes de uma experiência séria feita num "romance totalmente novo ou mesmo de um novo género literário", pelo que concluía que o autor tentara, "parece-me que com espantoso sucesso, mostrar como a pantalha da consciência, com o seu recurso que as suas sempre caleidoscópicas impressões acarretam (...), bem como a sua sinceridade e o seu honesto esforço por mostrar exactamente como é que os espíritos dos seus caracteres agem", assim como as palavras que usa no seu livro e que eram acusadas de "porcas" não passavam de "velhas palavras saxónias, pelo que o juiz declara que o livro de Joyce "é apenas um trágico e bastante poderoso comentário sobre as vidas íntimas de homens e mulheres (...), pelo que deve ser admitido nos Estados Unidos"(3).
Bibliografia essencial:
-James Joyce, Ulysses, Nova Iorque, Vintage International, 1990, 783 p.
-James Joyce , Ulisses, trad. de António Houaiss, Lisboa, DIFEL, 3º edição, 1987, 551 p.
-Stuart Gilbert, James Joyce"s Ulysses, Vintage Books, 1952, 405 p.
Marilyn French, The Book as World. James Joyce"s Ulysses, Nova Iorque, Paragon House, 1993, 295 p.
-A. Nicholas Fragnoli e Michael Patrick Gillespie. James Joyce A to Z. The essential reference to the life and work, Nova Iorque e Oxfoird, Oxford University Press, 1996,
(1) Veja-se este extenso monólogo erótico na citada trad. portuguesa, de António Houaiss, pp.518-551, começando e concluindo com um SIM.
(2) Veja-se , na citada tradução portuguesa do Ulisses, as agressivas intervenções do Cidadão as pp.221 e seguintes, e ainda 246-258.
(3) Sentença do juiz John M. Woolsey, de 6-XII-1936, no Tribunal do Sul de Nova Iorque, in James Joyce, Ulysses,Vintage International Edition, 1990, pp.,XIII-XIV.
* Historiador