O Sul global e a Rússia
Os exercícios navais conjuntos da África do Sul com a China e a Rússia, que vão durar 10 dias e visam oficialmente, entre outros objetivos, treinar a resposta a atos de pirataria em alto-mar, mereceram já duras críticas dos Estados Unidos, que afirmam não ser aceitável que Pretória coopere com Moscovo como se não houvesse em curso há 12 meses uma invasão da Ucrânia repudiada por grande parte do mundo. A resposta da diplomacia sul-africana veio tanto sob a forma de desvalorização dos exercícios (alegando que também já foi feito algo parecido com a Marinha americana) como sob a forma de reafirmação da soberania nacional, reivindicando o direito de cada Estado cooperar, mesmo que militarmente, com outro Estado. Um outro elemento justificativo adicionado pela África do Sul foi a necessidade prática deste tipo de treino e de cooperação internacional para os seus marinheiros, confrontados com a necessidade de proteger uma extensa linha de costa, dividida entre os oceanos Atlântico e Índico.
Se para a China, que já tem uma base no Jibuti com o pretexto de proteger a marinha mercante, estes exercícios antipirataria com os sul-africanos ajudam sobretudo a estender pouco a pouco a sua influência em África, para a Rússia o que está em causa é ainda mais importante, pois, perante as sanções internacionais promovidas pelos Estados Unidos e a Europa em reação à invasão da Ucrânia, mostra que tem um poder militar de alcance global e que está longe de se sentir isolada.
Não é segredo para ninguém que o Ocidente é olhado com desconfiança em muitos países africanos, sobretudo a Europa, associada à colonização, mas também os Estados Unidos, vistos como defensores de um mundo unipolar por eles liderado. E no caso da África do Sul, que só em 1994 enterrou o regime racista branco, há ainda toda uma velha geração de governantes ligados ao ANC, o partido de Nelson Mandela e que continua a governar, que se sente emocionalmente ligada a uma Rússia (na sua versão soviética) e a uma China que apoiaram durante décadas a sua luta contra o apartheid.
Contudo, este comportamento conciliador da África do Sul com a Rússia está longe de ser uma exceção no chamado Sul global, conceito geopolítico que abrange quase todos os países do Hemisfério Sul, mas também um México que até faz parte da América do Norte ou a Coreia do Norte. Boa parte do Sul global, diga-se, votou na Assembleia-Geral das Nações Unidas a condenação da invasão da Ucrânia, mas foram significativas a exceções, países como a Índia ou a própria África do Sul, que preferiram abster-se. E mesmo a nível da aplicação de sanções à Rússia, muitos preferem não seguir as decisões de americanos e europeus. Numa das suas primeiras entrevistas, o novo chefe da diplomacia brasileira relembrou que as únicas sanções a que o país se sentia obrigado eram as decididas pelo Conselho de Segurança da ONU, na situação atual impossíveis por causa do veto russo.
Perante uma formidável coligação de países ricos que lhe faz frente e apoia a resistência da Ucrânia, a Rússia procura, como pode, cativar simpatias entre os mais pobres e os remediados, fazendo-se valer de um sentimento comum de contestação a uma ordem mundial ditada pelo Ocidente. Isso vale-lhe vitórias pontuais, como no Burkina Faso as bandeiras russas serem vistas nas ruas em manifestações contra a presença militar francesa, ou agora com a África do Sul a não se importar de desagradar aos Estados Unidos por os seus navios estarem a navegar junto a navios russos, mas dificilmente alterará algo de significativo em relação aos desenvolvimentos no conflito na Ucrânia ou ao braço de ferro económico que está desde 24 de fevereiro de 2022 a fazer com o Ocidente.
Diretor adjunto do Diário de Notícias