O som de cristal e a amiga do ginásio
Dificilmente, algum juiz utilizará a poesia de Marante - uma referência da música popular portuguesa - para fundamentar uma decisão. Os magistrados preferem os professores de Direito e a densificação dos conceitos, inúteis para o cidadão que vai ler os acórdãos, muito úteis em termos de avaliação pessoal, já que permite ao juiz pavonear na sentença todo o seu conhecimento. Mas, Marante, há muitos anos, já cantava o "Som de Cristal, música que conta a história de um homem frequentador de "casas noturnas" que, um dia, é surpreendido pela presença da mulher numa delas. "Ela decidiu/Abandonar o papel de esposa/Para viver entre as mariposas/Que fazem ponte naquele lugar".
Vem esta brilhante introdução a propósito do primeiro caso de hoje (06A2736). Uma acção de divórcio, que chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, em 2006, porque nenhum tribunal anterior (primeira instância e Relação) tinha decretado a culpa de um dos cônjuges. "Fernando" avançou com o processo, alegando que a sua mulher tinha mantido "uma relação extraconjugal, de índole sexual" com um homem em "frequentes encontros amorosos, quer na loja" por si explorada, quer na casa de ambos. Aliás, reforçou, a alegada relação da sua mulher com o amigo era já comentada no local onde viviam, até porque a 18 de novembro de 2002 chegou a receber a seguinte SMS de um número desconhecido: "Abre os olhos, ou a TAP ainda te comunica que estás a prejudicar o tráfego aéreo por causa dos teus cornos postos pela tua mulher". Um escândalo, de facto!
Certo é que a mulher respondeu, alegando ter sido "Fernando" que abandonou o lar, apenas aí se deslocando para levantar correspondência, objetos pessoais, deixando de contribuir monetariamente para as despesas domésticas. Disse ainda que o formalmente marido "começou a chegar frequentemente a casa de madrugada", tendo ela "sido informada que "Fernando "era cliente habitual de casas de alterne em Bragança e que era visto a passear pela cidade de Bragança na companhia de outras mulheres". Amor com amor...
O problema dos tribunais é que as partes devem provar o que alegam. No caso de "Fernando", os juízes conselheiros consideraram que não basta um "diz que disse" qualquer para condenar a sua mulher por culpa no divórcio. "Condenação judicial que é o que aqui se trata, não de julgamento à mesa do café da localidade", escreveram os juízes Afonso Correia, Ribeiro de Almeida e Nuno Cameira. O mesmo entendimento foi aplicado à mulher: dizer genericamente que o marido chega tarde a casa e frequenta casas de alterne não chega para que haja violação culposa dos deveres de um casamento. O melhor, como aconselharam, é divorciarem-se de forma simples, bastando "dirigirem-se à Conservatória do Registo Civil e aí, por acordo e sem discussão de culpas, manifestarem a vontade de pôr fim ao casamento".
Quem também andou a passar um mau bocado com o casamento foi "António", um empresário que começou a ficar desconfiado com o facto de a sua mulher passar a frequentar o ginásio três vezes por semana. Mas, ao contrário do que "António" poderia à partida suspeitar, as idas ao ginásio nada tinham a ver com um novo PT ("personal trainer), mas sim com uma "jovem amiga" que a mulher fez questão de levar para umas curtas férias no Algarve, em Abril de 2006. Durante este período, segundo alegou "António no processo 171/07.5TMPRT, a mulher "fazia questão, e impunha mesmo, ficar sentada ao lado da jovem amiga durante as refeições tomadas em locais públicos"; "Permitiu-se mesmo, nalgumas dessas ocasiões estar de mão dada com a amiga e encostar-se a ela, sem que espaço físico o impusesse"; E "num restaurante deu de comer na boca à jovem amiga", que a tratava por "amor". Ainda por cima, amigos e familiares assistiram a tudo. O que lhe causou "vergonha".
Sendo assim, não foi difícil para os juízes conselheiros do Supremo decidirem, em 2010, pela culpa da mulher, obrigando-a ao pagamento de 2500 euros de indemnização. Tudo porque, para Nuno Cameira, João Camilo e Salreta Pereira, foi "indiscutível que o tipo de comportamento" da mulher foi "ofensivo, em concreto, da integridade moral do autor". "António", permita-se o comentário, bem que poderia ter encontrado outra solução, uma que fosse de encontro às pretensões das três partes, talvez em conjunto, mas preferiu o divórcio. Os conselheiros consideraram que a conduta da mulher com a amiga nada tinha de "usual", "pois não é de todo comum e socialmente reconhecido como natural que duas mulheres adultas, sendo uma casada, fiquem encostadas uma à outra em restaurantes (sem que o espaço físico o justifique), permaneçam de mão dada, uma delas (no caso, a ré) dê comida à outra na boca, e se tratem por "amor"". Os juízes vêem pouca televisão. Claramente!