O sexo, o medo e os fantasmas do cinema de Buñuel

Luis Buñuel volta a estar na nossa atualidade cinematográfica: um ciclo de dez filmes do mestre espanhol permite ver ou rever momentos emblemáticos da sua obra, incluindo o clássico "A Bela de Dia" e o oscarizado "O Charme Discreto da Burguesia".
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Com a reabertura das salas de cinema (algumas, pelo menos, para já), as memórias cinéfilas voltam a ser assunto de atualidade. Agora, a Medeia Filmes, em várias salas do país - começando pelo Nimas (Lisboa) e pelo Teatro Municipal Campo Alegre (Porto) -, apresenta um ciclo Luis Buñuel (1900-1983) com uma dezena de títulos.

O mais antigo é Labirinto Infernal (1956), bizarro objecto de "aventuras na selva" que Buñuel encena como uma paródia amarga sobre as indignidades da natureza humana. Os mais recentes definem a famosa trilogia final da filmografia do mestre espanhol, e tanto mais quanto o primeiro deles arrebatou o Óscar de melhor filme estrangeiro (em representação da França): O Charme Discreto da Burguesia (1972), O Fantasma da Liberdade (1974) e Este Obscuro Objeto do Desejo (1977).

A caracterização destes filmes como crónicas críticas sobre as classes dirigentes - a "burguesia" surge, aqui, como espelho perverso de todas as formas de poder - faz todo o o sentido. Buñuel sempre foi um observador atento e implacável das desigualdades nas relações humanas, como o provam, por exemplo, títulos de "estilos" tão diversos como A Febre Sobe em El Pao (1959), Simão do Deserto (1965) ou A Via Láctea (1969), tanto mais sugestivos quanto a sua vibração dramática não exclui os sinais de um humor cortante. Sem esquecer, claro, que o primeiro deles reúne duas figuras lendárias da década de 50: o francês Gérard Philipe e a mexicana Maria Félix.

Ainda assim, vale a pena acrescentar que essa visão "social" de Buñuel está longe de esgotar a vida interior do seu cinema. Isto porque as suas histórias nunca se resolvem num plano meramente descritivo, eventualmente realista. Ele é, afinal, um retratista da vida instável das nossas pulsões, a ponto de nos mostrar (e demonstrar) que não há fronteira entre a consciência e o inconsciente, entre o que designamos como elementos objetivos da nossa existência e tudo aquilo que já pertence ao domínio dos fantasmas. O medo circula, mesmo se, por vezes, parece uma caricatura das nossas fragilidades.

Os restantes três títulos do ciclo podem ajudar-nos a resumir as singularidades temáticas e estéticas do seu trabalho. São eles:

- O ANJO EXTERMINADOR (1962): uma quase revelação, já que esta produção mexicana, embora várias vezes mostrada entre nós, só agora tem estreia comercial nas salas portuguesas. Aqui encontramos a mais bizarra das ocorrências: reunidos numa festa, os protagonistas "burgueses" descobrem, entre a ironia e o pânico, que não conseguem sair do palacete onde se reuniram... Através do mais ambíguo naturalismo, Buñuel reencontra a inspiração surrealista dos seus primeiros filmes, em especial aqueles em que colaborou com Salvador Dali (Um Cão Andaluz e A Idade de Ouro, respectivamente de 1929 e 1930).

- DIÁRIO DE UMA CRIADA DE QUARTO (1963): é um dos títulos decisivos na carreira de Jeanne Moreau. Inspirando-se na obra de Octave Mirbeau, Buñuel filma a relação criada/amo como um "cenário de guerra" em que as relações de poder se cruzam com as desigualdades, práticas e simbólicas, entre homens e mulheres. Como sempre, a vida sexual apresenta-se bem distante das mais vulgares noções de "erotismo" e "gratificação": o sexo anda sempre de mãos dadas com os fantasmas.

- A BELA DE DIA (1967): quase todos os filmes são apresentados em cópias restauradas, sendo este o caso mais sofisticado, uma vez que o restauro foi feito em definição 4K. A história da "senhora-de-bem" que decide dedicar-se a uma atividade regular num bordel (durante o dia, precisamente) evolui como um labirinto de acontecimentos precisos, e sugestões mais ou menos "maquiavélicas", que reforçam uma crença nuclear de Buñuel: homens e mulheres foram feitos para se desentenderem, o que torna qualquer cumplicidade efémera num fenómeno sublime, capaz de abalar todas as certezas psicológicas e morais. Com Catherine Deneuve numa das suas composições mais emblemáticas, este é um filme de esplendorosa liberdade de pensamento, discutindo, afinal, o que é isso de nos conhecermos uns aos outros. Seria uma tragédia, não se desse o caso de, pelas intrigas buñuelianas, circular sempre um riso sereno, tecido de crueldade e ternura.

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