A história de Jesus Christ Superstar é quase sempre contada a partir do filme com esse título lançado em 1973. Na verdade, tudo começou um pouco antes, não em cinema, mas no universo dos discos, com um LP lançado em 1970. Seja como for, para deslindarmos o trajeto do vinil até chegarmos ao fenómeno das salas escuras, é preciso passar pelos palcos: o musical Jesus Christ Superstar estreou-se há meio século (mais precisamente, a 12 de outubro de 1971) no Mark Hellinger Theatre, em Manhattan, sala já na altura lendária pelo facto de ter acolhido as primeiras temporadas de My Fair Lady (entre 1956 e 1962)..A história é tanto mais paradoxal quanto a edição em disco, colocada nas lojas a 27 de outubro de 1970, surgiu, não a pensar no palco, mas porque... não havia palco. De facto, Jesus Christ Superstar foi, antes de tudo o mais, concebido como um espetáculo musical. Deparando com inesperadas dificuldades para concretizar o seu projeto, os autores - Andrew Lloyd Webber (música) e Tim Rice (letra) - decidiram editá-lo em disco e... esperar para ver. Na prática, o sucesso do álbum acelerou o processo de chegada à Broadway, mantendo-se em cartaz até 1973, num total de 711 representações; a estreia no West End de Londres ocorreu em 1972..A opção pela edição inicial em disco foi, em qualquer caso, um risco relativo. Se as vendas tivessem sido pouco estimulantes, podemos supor que a concretização em palco teria sido mais problemática, ou mesmo impossível. O certo é que a proposta da dupla Webber/Rice se inscrevia num modelo cuja moda estava a germinar. A saber: a ópera rock..A banda The Who, de Pete Townshend e Roger Daltrey, desempenhara um papel pioneiro em tal fenómeno com o duplo álbum Tommy, lançado cerca de um ano e meio antes de Jesus Christ Superstar, a 23 de maio de 1969. A saga da personagem de Tommy Walker, um rapaz cego, surdo e mudo, pertencia também a um outro fenómeno que foi ganhando peso na história da música popular a partir de meados da década de 1960, sobretudo depois de Sgt. Pepper"s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles. Ou seja: o "álbum conceptual"..A dimensão "conceptual" não visava necessariamente o palco. Tratava-se de valorizar a própria performance, fosse ela uma odisseia de vários meses de produção em estúdio, como aconteceu com os Beatles, ou um evento público capaz de desafiar algumas normas clássicas do entertainment, como foi o caso do lendário Concerto for Group and Orchestra, reunindo os sons hard rock dos Deep Purple com a Royal Philarmonic Orchestra no palco do Royal Albert Hall, em Londres, a 24 de setembro de 1969 (editado em disco três meses mais tarde)..Nada disto pode ser dissociado de uma outra dimensão, ao mesmo tempo temática e narrativa: Jesus Christ Superstar apostava na representação de Jesus Cristo através de melodias e ritmos do rock. Blasfémia? Nem por isso. É certo que as polémicas sobre a "fidelidade" ou a "legitimidade" da representação de Cristo acompanharam o musical, mas até mesmo o Papa Paulo VI (quando conheceu a versão cinematográfica) fez uma apreciação muito elogiosa da obra..Acontece que, para o melhor ou para o pior, os anos 1960 foram tempos de reconversão de muitas formas tradicionais de representação - certamente não por acaso, a noção de "contracultura" é indissociável das convulsões dessa época, sendo Jesus Christ Superstar um herdeiro direto de tais convulsões..A propósito de tal contexto, a sexualidade é quase sempre (e de forma muito simplista) apontada como sintoma dominante do que se viveu e polemizou. Mas seria, no mínimo, precipitado esquecer as discussões que, da música ao cinema, passando pela literatura, se desenvolveram em torno da representação de outros temas fraturantes, do espaço familiar à ação política, passando, enfim, pela religião. Para nos ficarmos por um exemplo sugestivo, recordemos que, em dezembro de 1970, John Lennon, com a Plastic Ono Band, lançara a sua canção God que começa com dois versos, no mínimo, pouco ortodoxos: "Deus é um conceito / pelo qual medimos a nossa dor.".Enfim, importa também não ceder ao maniqueísmo de rotular Jesus Christ Superstar como um objeto "panfletário", "militante" de uma qualquer causa (religiosa ou antirreligiosa). Talvez se possa até considerar que este é um musical nascido de uma sensibilidade apostada em abordar os temas sagrados, colocando-os, não em conflito, mas em complementaridade com as ideias e os valores profanos. Em declarações à revista Time (9 novembro 1970), Tim Rice teve estas palavras esclarecedoras: "No essencial, estamos a tentar contar a história de Cristo como um homem. Penso que a sua importância se reforça quando olhamos para ele como um homem.".Pelo seu guarda-roupa, cenários e coreografias, Jesus Christ Superstar foi também frequentemente associado a toda uma iconografia hippie. Não será um rótulo ideológico, antes um sinal de pertença a uma época de muitas transfigurações e discussões em torno de comportamentos e valores, tanto individuais como coletivos. Aliás, podemos ver Jesus Christ Superstar como um descendente de Hair, o musical de Galt MacDermot (música) e Gerome Ragni/James Rado (letra), cuja estreia ocorrera em 1968, tendo ficado como bandeira de muitos protestos pacifistas contra a guerra do Vietname - a sua transformação em filme foi mais demorada, tendo ocorrido apenas em 1979, com direção de Milos Forman..A canção Superstar, com a sua imponente introdução orquestral, terá ficado como um dos símbolos mais fortes do musical, aliás refletindo o processo de humanização a que Tim Rice se referiu: "Jesus Cristo / Jesus Cristo / Quem és tu? / O que é que sacrificaste?" Ainda assim, o tema mais subtil ou, pelo menos, mais romanesco na caracterização da personagem de Jesus será I Don"t Know How to Love Him, cantado pela personagem de Maria Madalena. Ela reconhece-o, afinal, como uma entidade que se lhe escapa tanto mais quanto mais dele se aproxima: "(...) Se ele dissesse que me ama / Sentir-me-ia perdida, assustada / Não saberia que fazer, não saberia mesmo que fazer / (...) Ele assusta-me tanto / Quero-o tanto / Amo-o tanto.".A adaptação de Jesus Christ Superstar ao cinema prolongou uma tradição que pontuou a produção de Hollywood ao longo dos anos 1940/50, tradição que, apesar da raridade dos filmes musicais, persiste no século XXI: o objetivo era "duplicar" em filme o espetáculo de palco..Norman Jewison, realizador do projeto, também coprodutor (com Robert Stigwood), não seria um "especialista" do género musical, antes um tradicional artesão dos grandes estúdios cuja versatilidade lhe permitia saltar, com eficácia, de um género para outro. Dois policiais tinham consagrado a sua competência: O Aventureiro de Cincinnati (1965), um dos grandes sucessos de Steve McQueen, e No Calor da Noite (1967), premiado com cinco Óscares, incluindo melhor filme do ano. Sem esquecer, claro, que Jewison dirigira mesmo um musical, Um Violino no Telhado, líder das bilheteiras em 1971..Dois anos mais tarde, a transposição do palco para filme fez-se como muitas vezes acontece neste tipo de produções, passando do espaço fechado do palco para os territórios abertos dos cenários naturais. Assim, o essencial da rodagem decorreu em zonas desérticas de Israel, em particular nas ruínas de Avdat, no sul do país (cuja origem remonta a quatro séculos a.C.). Com uma singular cena de abertura: os intérpretes chegam ao cenário, não exatamente assumindo já as suas personagens, antes como uma trupe de atores que vem montar e representar o próprio musical. O guarda-roupa, até mesmo o velho autocarro em que se transportam, não são estranhos ao look consagrado pelos hippies, lembrando mesmo muitos dos jovens que tínhamos visto no Festival de Woodstock (no filme Woodstock, de Michael Wadleigh, lançado em 1970)..O impacto cultural de Jesus Christ Superstar mediu-se também, como é óbvio, pelos seus feitos comerciais. Nos EUA, o filme foi o 10.º mais rentável de 1973, multiplicando por sete o orçamento de produção (3,5 milhões de dólares de custos; 24,5 milhões nas bilheteiras). Com esse detalhe irónico, inevitavelmente perverso, de o recordista do ano ter sido O Exorcista, de William Friedkin, parábola sobre os poderes da religião, neste caso testados em registo de cinema de terror..Na trajetória de Andrew Lloyd Webber, Jesus Christ Superstar seria seguido por sucessos ainda maiores como Evita (1976), de novo com Tim Rice, Cats (1981) ou O Fantasma da Ópera (1986). Segundo informações disponíveis no site oficial do musical, no dia 28, inicia-se nos EUA uma digressão de comemoração do 50.º aniversário, ao mesmo tempo que se preparam novas encenações na Suécia e na Finlândia..Curiosamente, em 1988, a Universal Pictures, estúdio produtor do filme Jesus Christ Superstar, viria a financiar outro título marcante na história das relações entre cinema e religiosidade. Não um musical, antes uma prodigiosa tragédia intimista: chama-se A Última Tentação de Cristo e tem assinatura de Martin Scorsese..dnot@dn.pt