O Rinoceronte de Ionesco

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Eugène Ionesco nasce em 16-11-1909 em Slatina, na Roménia meridional, filho de um pai romeno, chamado também Eugen, que se doutorou em Direito, e de mãe francesa, Thérèse Ipcar, de ascendência judia, família que parte pouco depois para França, embora o pai voltasse em 1916 para Bucareste, uma vez que a guerra começara então no seu país de origem, acabando por se separar da mulher, entregando o cuidado dos filhos à primeira esposa.

Eugène estuda Literatura Francesa e prepara uma tese de doutoramento a ser defendida em França, embora nunca a tivesse concluído. A partir de 1942, instala-se de vez em França, agora com a sua mulher, vivendo um período difícil, primeiro em Marselha e depois em Vichy, onde desempenhou as funções de Adido Cultural na legação romena em França, exercendo diversas profissões. Fixou-se por fim na capital francesa em 1945, vivendo de empregos precários, como o de revisor de provas dum editor de obras jurídicas, naturalizando-se francês em 1950. Nesse mesmo ano estreia-se com enorme sucesso uma peça sua, A Cantora careca, dum género teatral dedicado a denunciar a futilidade das palavras, objetivo intentado na mesma época pelas peças de Samuel Beckett como À Espera de Godot. Uma bifurcação profunda do teatro do romeno naturalizado francês ocorreria com as suas peças maiores, O Rinoceronte (1958), O Rei morre (1963) e A Sede e a Fome (1966).

Em 1970 Ionesco seria acolhido na Academia Francesa.

Esta peça põe em cena uma estranha epidemia, a "rinocerite", que ocorre numa pequena cidade em que os seus habitantes se transformam em rinocerontes. Misturado o cómico e o trágico, a peça sublinha os perigos do conformismo, mostrando como o pensamento do humano pode ser manipulado pelas ideologias totalitárias.

A peça teve imediato sucesso na Europa, em Londres, em adaptação por Orson Welles, com Lawrence Olivier no papel de Bérenger. Peça emblemática do teatro do absurdo, ela constitui sem dúvida uma das obras maiores de Ionesco.

Sendo uma das peças sobre o aparecimento e triunfo do fascismo nos anos trinta europeus, com óbvia inspiração direta no regime da Guarda de Ferro liderada pelo general e político Ion Antonescu (1882-1946), o Conducator que apoiou Hitler e estabeleceu na Roménia um regime irmão do nazismo, inspirado no movimento da Legião do Arcanjo São Miguel dirigido por Corneleu Codreanu (1899-1938).

Em setembro de 1959, tendo eu quase 20 anos, a revista semanal O Mundo (1) encarregou-me de ir entrevistar Ionesco, em Sintra, nos Seteais, já que ali perto se representara pela primeira vez uma peça do dramaturgo em Portugal (2).Transcrevo desta entrevista as perguntas que fiz e as respostas de Ionesco:

"Seteais. Numa pequena sala, tranquila, Ionesco recebe-nos. É um homem de extrema amabilidade. Fala numa voz um pouco velada, doce e suave. Poucos gestos. Face serena, quase melancólica.

Foi influenciado pelo surrealismo?
Não estou certo, mas creio que sim. Trata-se de um fenómeno artístico e cultural muito importante de que todos beneficiaram: os que fazem pintura ou teatro ou poesia, não podem fugir a essa influência.

Em O Rinoceronte quer-nos parecer que abandonou uma técnica de esvaziamento verbal; marcará essa obra uma nova fase?
Não sei. Há nesta peça, como nas outras, temas antigos. Mas se nas outras, se estudava a proliferação da matéria, aqui trata-se antes da proliferação dum monstro: os humanos desumanizam-se. Mas encontramos ainda uma crítica da linguagem no 1.º acto. O Lógico é ridicularizado, não porque raciocine ilogicamente, mas porque o faz fora do real. Apresenta-se uma crítica do formalismo verbalista. O tema básico é o advento de uma catástrofe - o aparecimento de uma catástrofe - o aparecimento de um rinoceronte. As pessoas não tomam consciência do facto, preocupando-se antes com pormenores secundários (se o monstro é asiático ou africano ) ou pretendem que tudo continue quotidiano.

A sua obra conduz a uma contestação do mundo e do homem ou antes a uma afirmação de solidão?
Uma afirmação de solidão? Sim. Mas o que entender por solidão? Não há solitários no mundo de hoje. Os colectivismos são um grande perigo porque repudiam a solidão. A verdadeira comunidade é a solidão de cada um. Só estando comigo mesmo posso ser universal. Um mundo exclusivamente social, como o de hoje, tem falta de profundidade. Paradoxalmente poderíamos afirmar que a verdadeira comunidade está na solidão.

Acha justa a designação de "teatro de absurdo" para as suas obras?
Não sei se haverá aí uma negação da esperança. Ao denunciar o Absurdo, contesto, não o mundo, mas a "absurdidade". Como poderia eu denunciá-lo se não tivesse em mim o paradigma do Não-Absurdo?...

Sofreu alguma influência da literatura romena?
De modo algum.

Acredita na existência de uma crise teatral europeia?
Sim e não. Se se fala demais em crise, ela poderá chegar. Há sempre crise de obras, de autores, de encenadores. Fala-se noutro sentido: Gabriel Marcel, filósofo confuso, contesta-a. Mas tem de haver crise. Ela é permanente. O homem é um animal doente. Deixaria de haver crise do teatro quando deixasse de haver crise do homem. Seria o sono, a morte.

Que pensa do teatro de Beckett?
Gosto muito de Beckett.

- André Le Gall, Ionesco, Paris, Flamarion, 2009,621 p, ilustr.

- Le Robert des Grands Écrivains, Paris, Le Grand Livre du Mois, pp.626-633.

- Eugène Ionesco, Le Rhinocéros, Paris, Gallimard, 1959, 213 p., peça em 3 atos e 4 quadros.

1 A revista semanal lisboeta O Mundo durou de 6-7-1957 a 19-3-1960, tendo como proprietário Manuel Ataíde e diretor Gentil Marques. Fui entrevistar Ionesco, juntamente com um colega da faculdade que aparece também nas várias fotos desse nº 110, de 12-9-1959, pp.40-451. Eu apareço na mesa de trabalho dos Seteais, à esquerda (p.40) e o meu ajudante Jorge Mota, à direita (p.41). Há ainda duas fotos de Ionesco, na p.40, e outra, a meio da mesa, a falar.

2 Na véspera de minha entrevista com Ionesco, comprei esta edição de uma das peças que eu mais admirava, Le Rhinocéros. E quando, no final da nossa entrevista lhe pedi uma dedicatória no livro que eu comprara, Ionesco , pondo uma mão sobre o meu ombro, como sinal de sinceridade, me observou: "Acredite que é fácil escrever livros, mas escrever dedicatórias é muito difícil, pelo que, ao fim de alguns anos de busca, cheguei a uma conclusão: utilizaria sempre, nas dedicatórias, uma fórmula-carimbo invariável". E escreveu a caneta preta, sobre a página de abertura do editor: "Pour João Medina, sympatiquement, Eugène Ionesco". E após devolver-me o livro com a dedicatória-tampão, deu-me um abraço, acrescentando: "Só que, neste caso, é mesmo uma dedicatória de amigo que simpatizou consigo!"."

*Historiador

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