O que vai o Papa canonizar em Fátima?
O que vai o Papa Francisco canonizar em Fátima? Às dez da manhã deste sábado, quando responder afirmativamente ao pedido do bispo de Leiria-Fátima para proclamar santos os pequenos Jacinta e Francisco Marto, o Papa estará a confirmar alguns aspectos da religiosidade popular, mas também a afirmar algumas das ideias em que tem insistido.
1. Para Francisco, a religiosidade popular é uma base em que a Igreja pode assentar a sua missão evangelizadora. A partir de dimensões como a fraternidade, a relação física e tangível com o divino ou a profunda conexão com a cultura popular, é possível concretizar novas possibilidades de anúncio do Evangelho. Isso mesmo o Papa Bergoglio tem repetido em diversas ocasiões, desde quando era arcebispo de Buenos Aires, até aos primeiros momentos do seu pontificado.
Na Evangelii Gaudium, a primeira grande exortação apostólica do Papa, Francisco escrevia, já em 2013: "As formas próprias da religiosidade popular são encarnadas, porque brotaram da encarnação da fé cristã numa cultura popular. Por isso mesmo, incluem uma relação pessoal, não com energias harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne, têm rostos."
O Papa sublinhava, aliás, que essas manifestações populares estão "aptas para alimentar potencialidades relacionais e não tanto fugas individualistas". Ou seja, a dimensão individual com que tantas vezes a religiosidade popular é identificada permite também vincar a proposta comunitária do cristianismo. Como o Papa acrescenta nesse mesmo texto, referindo-se a expressões mais identificadas com fenómenos como a new age: "Noutros sectores da nossa sociedade, cresce o apreço por várias formas de "espiritualidade do bem-estar" sem comunidade, por uma "teologia da prosperidade" sem compromissos fraternos ou por experiências subjectivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior imanente."
Mas o Papa insiste ainda na necessidade de a Igreja ser criativa, mesmo em relação às formas mais tradicionais de religiosidade. Por isso, em Fátima, esse apelo à criatividade já se fez notar ontem mesmo, com a autêntica recriação que o Papa fez de uma oração medieval e tradicional como a salve-rainha transformada numa afirmação do compromisso cristão com a transformação do mundo a partir da relação profunda com Deus.
2. E o que irá o Papa dizer a propósito da canonização das duas crianças? Este é um gesto inédito na história do catolicismo, como já tem sido sublinhado nos últimos dias: é a primeira vez que duas crianças que não morreram mártires são canonizadas e proclamadas santas pela Igreja.
Nesse sentido, o Papa não deixará, com certeza, de sublinhar a importância desta novidade na Igreja. Muitas correntes de espiritualidade, na linha do que tem sido afirmado na pedagogia, sublinham a capacidade espiritual dos mais novos. Francisco e Jacinta, que eram fruto da espiritualidade do tempo, deixaram também sinais de uma fé com alguns sinais de futuro: a contemplação de Francisco e o acolhimento de Jacinta, como tantas vezes é sublinhado; o apelo à conversão como sinal de mudança do coração em favor dos outros; e ainda o desejo de paz, tão presente desde o início nas manifestações populares em volta de Fátima.
Esta canonização pode ser também o momento de o Papa recordar outras das suas insistências, precisamente em relação às crianças, que têm sido objecto da especial predilecção de Francisco: as crianças são, hoje, vítimas de abusos sexuais, de tráfico humano, de incorporações militares forçadas, da fome e da miséria, da falta de cuidados de saúde primários.
Uma canonização pode reafirmar também questões por vezes esquecidas.
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