De Elena Ferrante a Lobo Antunes. O que trouxe de melhor a literatura da última década

Há quatro meses o DN fez o balanço literário da década anterior. Hoje, no Dia Mundial do Livro, em que toda a atividade editorial está parada, vale a pena lembrar esses livros, símbolos das novidades que estamos a perder e que podem nunca chegar às livrarias.
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A literatura em português teve poucos pontos altos na última década. A nova geração de escritores portugueses ainda está a aquecer e muitos dos bons títulos que um ou outro autor publicou nem sempre tiveram continuação na sua excecionalidade. Uma deficiência que não é só nossa, pois lá fora esse equilíbrio numa obra também foi difícil de achar ao longo dos últimos dez anos. Por essa razão não é difícil fazer uma lista com a melhor dezena de títulos publicados em todo o mundo, mesmo que fiquem de fora alguns livros quase imperdíveis.

O mistério Elena Ferrante que seduziu todos os leitores do mundo

O maior sucesso comercial desta última década foi uma trilogia que explorava o sadomasoquismo soft, a famosa 50 Sombras de Grey, coisa que dificilmente irá ficar na história. Mas em termos comerciais pode dizer-se que um dos maiores fenómenos destes últimos dez anos foi a publicação da tetralogia A Amiga Genial de Elena Ferrante. Poucos avaliarão essa obra de uma autora que usou o pseudónimo sob uma qualidade menor e mesmo os poucos que ficam de fora do poder de sedução imenso que teve junto dos leitores de todo o mundo têm de dar o braço a torcer que nada mais aconteceu com essa força na literatura mais recente. Os quatro volumes não passaram despercebidos em Portugal e a adesão foi total, deixando uma fome literária para o próximo livro da escritora italiana, que sairá antes das férias do verão.

A recuperação do thriller por Gillian Flynn

Em 2012 foi publicado o thriller psicológico de Gillian Flynn, Em Parte Incerta (Gone Girl) , que teve o mérito de recuperar um filão policial que estava bastante morno e, principalmente, criar o fenómeno de gerar a possibilidade de dezenas de autoras verem a luz do dia. Foi o caso de Paula Hawkins e o seu A Rapariga do Comboio, que também se tornou parte obrigatória dessa descoberta de (apenas) mulheres terem direito a escreverem livros de grande suspense pouco depois. Gone Girl foi uma descoberta que fez os leitores voltarem a interessarem-se pela narrativa que envolve um crime e colocar entraves no descobrimento do autor, até porque o argumento era muito bom e os volte-faces mais do que inesperados. Pode dizer-se que muita da literatura desta última década ficou-se por esse género e que as editoras inventaram todo uma corte de escritoras que jamais veriam a luz do dia por não terem as capacidades de Gillian Flynn - alguém que fazia lembrar a principal antecessora neste género, a dama do crime Agatha Christie.

O grande livro de António Lobo Antunes

Lançado em outubro de 2010, o romance de António Lobo Antunes Sôbolos Rios que Vão foi um dos exemplos de literatura mais marcante desta década e até da carreira do escritor português. Fazendo parte de um ciclo de três obras sob um mesmo tema, a vida e a morte, o autor consegue levar o leitor aos mais íntimos meandros desta realidade. Inspirado na sua própria experiência, o protagonista faz um relato épico sobre uma operação complexa a que é sujeito e entre os momentos de consciência e de inconsciência revisita-se. O título retirado a um verso de Camões confirma a intenção do romance, o de como a vida é um rio que nunca pára até ao seu próprio fim. Há um 'personagem' que se torna mítico, um ouriço aprisionado num tronco, a melhor metáfora para o mal no interior do corpo humano.

O melhor retrato das migrações a que a política obriga

O título era O Simpatizante e com ele o escritor vietnamita/norte-americano Viet Thanh Nguyen venceu o Prémio Pulitzer para Ficção em 2016. A história começa em abril de 1975, quando o exército dos Estados Unidos perde a guerra do Vietname com a simbólica derrocada de Saigão. A família do protagonista espera ser uma das que partirão para os EUA num dos últimos voos e o pai, um capitão, espera que o general responsável pela elaboração da lista de fugitivos o inclua. Segue-se um novo capítulo em Los Angeles, onde o simpatizante relatará aos vietcongues o resultado da sua espionagem em solo americano sobre os refugiados da ex-elite vietnamita. Um retrato das migrações que já acontecem há mais anos e que em pouco diferem das que assistimos atualmente.

O orientalismo contado numa única noite por Mathias Enard

São poucos os romances que conseguem num curto espaço de tempo que ocupa a narrativa, horas neste caso, fazer o que a Bússola é capaz. O seu autor, o francês Mathias Enard já tinha surpreendido noutras experiências literárias mas nunca foi tão longe como nesta combinação de uma paixão europeia pelo orientalismo e a evocação de fantasmas noturnos que perseguem o protagonista. O romance ganhou o Prémio Goncourt de 2016 e merecia-o pois poucos são os escritores capazes de num mesmo livro fazerem o leitor viajar por uma reconstrução histórica como esta.

Como O Pintassilgo de Donna Tartt surpreendeu

O título é inesperado, O Pintassilgo , mas a americana Donna Tartt consegue dar destaque à voz de um protagonista de 13 anos ao longo de mais sete anos e de centenas de páginas de uma elaborada construção literária. Tudo começa de forma inesperada com um atentado num museu e esse jovem rouba uma pequena pintura no meio da confusão. Esse pequeno crime inicial vai levá-lo para outras práticas menos corretas, e é esse percurso que este livro bastante premiado relata. A receção crítica do livro foi na maioria positiva e esteve mais de meio ano na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times.

António Damásio e a oferta da consciência

A obra do neurocientista António Damásio tem surpreendido os leitores de todo o mundo e na última década, além de uma reedição do seu livro sobre Espinosa e da novidade A Estranha Ordem das Coisas, o cientista publicou O Livro da Consciência - A Construção do Cérebro Consciente. Desde a primeiras frases - "A consciência não é um mero estado de vigília" - que se entra num mundo do desconhecido que se vai transformando em percetível. Se O Erro de Descartes foi para a biblioteca de cada português, este novo trabalho dá passos muito grandes em relação às suas teorias, evoluindo mesmo alguns passos em algumas deles, e explica quem é cada um de nós na forma possível até agora.

A revisão da História por António Borges Coelho

Entre os historiadores portugueses não existe falta de sabedoria, mas inexiste na maior parte deles uma arte de saber escrever de forma a que os acontecimentos se tornem o mais transparentes possíveis. Uma das raras exceções nesse estilo tão sedutor como rigoroso é a nova História que António Borges Coelho está a publicar, sendo que se pode escolher o volume 5 da História de Portugal: Os Filipes como um dos bons exemplos. É um volume que reúne a boa prática da escrita com um manancial de informação que permite reconstruir esse período da nossa história e da ausência do sentido de identidade hispânica.

O homem Sapiens & Deus que Yuval Harari explicou

A década fica marcada por dois trabalhos de investigação que o historiador israelita Yuval Noah Harari publicou, nos quais explica a seu modo como foi a evolução da humanidade - em Sapiens - e como poderá ser o seu futuro - em Homo Deus . Independentemente de o leitor estar a favor ou contra as suas opiniões, Harari faz um panorama do ser humano como raramente se leu e prepara os leitores para o que está a acontecer ao mundo e a tantas e diferentes sociedades que o compõem, designadamente colocando bem no centro da discussão o fim de uma evolução devido à evolução tecnológica.

Quando um romance extraordinário de Emma Cline se perde

A história de sucesso de um romance - além da sua qualidade intrínseca - começa sempre pelo rumor de que se está perante bom livro. Foi assim com As Raparigas , de Emma Cline, que fez furor na Feira de Frankfurt e deu luta a todos os editores do mundo para adquirir os seus direitos. Quando As Raparigas saiu, as vendas não corresponderam ao que se esperava, passando mais despercebido do que merecia. Cline escreveu um romance impressionante e que conta por dentro o que as "meninas" de Charles Manson viveram no verão de 1969, entrando nos seus pensamentos de forma a perceber os atos que perpetraram. O modo de contar essa história e a forma como se compreende a mente das raparigas transformou este romance num dos mais interessantes desta década.

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