O que o covid-19 nos tem ensinado e nunca tivemos tempo para querer saber
Sim, claro, o covid-19 apresentou-nos o covid-19, do qual, antes dele, nunca tínhamos ouvido falar. Mas o propósito desta crónica é lembrar ignorâncias puras ou indiferenças várias sobre as quais nunca tínhamos deitado um olhar curioso, ou então pouco... E, no entanto, bem mereciam atenção - para o bem, ou para o mal.
Um exemplo levezinho: Equador, o país. Sim sabíamos que era na América do Sul (ou será Central?...) e com capital com nome sonoro, Quito, mas quase mais nada. Vejam e comparem com respostas prontas: Chile? Pinochet, país estreitinho, mineiros soterrados... Argentina? Tango, Borges, já para não falar no Maradona... Bolívia? Coca. Peru? Vargas Llosa. Colômbia? Coca e García Márquez... Até a Guiana Francesa nos lembra qualquer coisa: Papillon. Guiana britânica? O suicídio coletivo da seita do Jim Jones. Venezuela? Essa, então, é todos os dias: foi-se o Chávez, veio o Maduro... Equador? Humm, Equador, Equador...
O Equador é na América do Sul, não é?, hesitaríamos na pré-pandemia. Hoje a resposta seria rápida e a certeza dolorosa: Equador é cadáveres envoltos em plástico durante dias na rua, à espera de um caixão... em cartão. O Equador merecia mais, o centro de Quito é uma relíquia, um país sem histórias costuma ser feliz, é o líder mundial de exportação de flores e deu um dos maiores contributos científicos para nos civilizar.
Darwin trouxe de lá, das equatorianas ilhas Galápagos, isto: não fomos inventados por deuses, fomo-nos criando. E, no entanto, chegámos, ali, aqui: corpos em plástico, esperando dias para serem enterrados num caixote de cartão.
Um dos países fundadores da nossa grandeza (onde nasceu, repito, A Origem das Espécies, Darwin), expondo, e nas ruas, a nossa imensa fragilidade. Num sopro, num respirar imprudente, tudo se desmorona pela força do mais ínfimo ser, um vírus. No outro dia, Carlos Fiolhais, com um precioso saber, saber passar o que sabe, deixou no DN esta frase de aviso: "Só há três competidores no planeta: o homem, os vírus e as bactérias."
Há meio milénio quase exato, o conquistador Francisco Pizarro desembarcou no Equador, ganhou uma batalha aos guerreiros incas e um vírus dos invasores, a varíola, dizimou os incas civis. Hoje, outro bicho vindo do além volta a dizimar aquele país, se ainda não em números astronómicos (mas não serão na morte todos?), pelo menos mostrados em condições espantosas - caixões de papel grosso.
Um vírus! Uma não imagem que deveria estar sempre exposta no salão de fumo onde os grandes caçadores têm sempre as suas fotos com o Double Rifle, de bala .577 Nitro Express, arma alçada e, ao lado, o elefante caído no capim da savana. Ri de quê o homem? O vírus ensina-nos que a soberba não é o mais adequado em quem se engana no tamanho do inimigo a abater.
Outro exemplo, sem ir muito mais longe, o Brasil. Esse de um chorar cantado por Elis Regina, de uma linha do jornalismo mais coloquial da nossa língua, Nelson Rodrigues, de um traço riscado no céu antes vazio, Niemeyer, de uma cidade imperfeita com a qual só a perfeição teatral de Veneza compete, Rio, de uma beleza de nos encandear, a revista Piauí, de uma gentileza de todos os dias, a imigrante brasileira de um café central em Viseu, de um humor de Porta dos Fundos, enfim, o grande Brasil, querido, culto, já vos disse?, culto, culto, da cultura até eu entender, do colunista Marcelo Gleiser nas páginas do jornal Folha de São Paulo, até à cultura do físico Marcelo Gleiser ensinando na Universidade de Dartmouth...
Esse Brasil. No domingo passado, um rapazito estava no Brasil olhando pela janela do seu ónibus. O presidente Jair Bolsonaro, dias antes, apelara ao jejum e à oração contra o coronavírus. Pastores das igrejas evangélicas chamaram ao apelo "proclamação santa feita pelo chefe supremo da nação." Nestes dias de peste, Bolsonaro tem hábito de nas reuniões governamentais, ajoelhar-se e agarrar-se, mãos nos ombros dos parceiros, cabeças encostadas e rezas de perdigotos trocados - e esse todo filmar e propagandear em vídeo.
Naquele domingo, um brasileirito, nove, dez anos, ia no autocarro, numa rua que atravessava o Brás, um bairro central e de comércio popular em São Paulo. Um vídeo mostrou-me o miúdo, fascinado com o que se passava lá fora, e logo a objetiva também foi para lá das janelas. No fio do passeio, ajoelhados, dezenas de fiéis estavam de braços abertos ou virados para o céu, respondendo ao apelo dos seus pastores que respondiam à proclamação santa do homem que eles fizeram chefe do Brasil.
O vídeo não voltou ao rapazito que eu provavelmente nunca mais verei. Mas sou crente. Um país que em São Paulo pegou no filho de um recentemente desembarcado casal analfabeto de camponeses italianos e dele, João Rubinato, com uma geração só de português tosco, transformou em Adoniran Barbosa (1910-1982), nome artístico, um dos mais geniais letristas da minha língua - autor de canções como Trem das Onze e Saudosa Maloca e Samba do Arnesto... - um país tão bom assim vai resgatar o rapazito de domingo e o pesadelo que ele viu de joelhos, no Brás.