O que mudou nas UCI covid? Há menos doentes e maioria está lá por outras doenças graves
A 8 de fevereiro de 2021, Portugal registava 2505 novos casos de infeção por covid-19, e o total nacional de infetados era de 767 915, segundo o boletim diário da Direção-Geral da Saúde (DGS). No que toca a internamentos, e numa altura em que o país ainda se encontrava em confinamento geral, o dia era marcado por um número: 6344 internados nos hospitais portugueses. Destes, 877 estavam em unidades de cuidados intensivos (UCI) por terem desenvolvido formas graves da infeção por SARS-CoV-2.
Hoje, ou melhor ontem, o cenário já é bem diferente, embora o número de novos casos diários seja muito superior, 30 757 - mesmo assim, menos do que há uma semana e até há duas, quando se atingiu o pico da onda gerada pela nova variante Ómicron, com 65 578 casos -, e o do total de infetados também (2 963 747). A diferença para esta fase da pandemia ser considerada "mais leve", antevendo-se medidas de alívio para as restrições que ainda existem, é precisamente o balanço que se faz em relação aos internamentos, quer em enfermarias quer em UCI. De acordo com o boletim de ontem, o país tinha 2419 pessoas internadas, 171 em cuidados intensivos. Há duas semanas, no pico desta onda, a 26 de janeiro, havia 2313 internados, 154 em UCI.
Olhando apenas para os números, a grande diferença é a menor severidade da doença e, com isso, "o número de doentes internados", como concordaram dois responsáveis de departamentos de medicina intensiva da região de Lisboa e Vale do Tejo contactados pelo DN.
Para Nuno Catorze, diretor do Serviço de Medicina Intensiva e do Departamento de Urgência do Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT), um dos serviços que no primeiro ano de pandemia e no ano passado foi das unidades satélites que receberam doentes desde o norte até ao Algarve com doença grave covid, "a grande diferença é a quantidade de doentes".
"São muito menos, mas também há diferenças nas idades: enquanto há um ano tínhamos na unidade doentes entre os 40 e os 50 anos em situação de doença grave pela covid, agora temos doentes de faixas etárias mais elevadas, com 55, 60, 65 e pontualmente com 70 anos, mas a esmagadora maioria tem comorbilidades associadas pesadas, e estão lá para serem tratados por esse motivo. Raros são os casos em que os doentes estão lá devido a doença grave pela covid", relata ao DN.
Pedro Póvoa, coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente, do Hospital de São Francisco Xavier, do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, afirma também que, pela sua experiência, "a percentagem de infetados que necessitam de internamento hospitalar é residual comparativamente à do ano passado".
"Basta olhar para o número de infetados que nas últimas semanas atingiu mais de 60 mil por dia, enquanto o número de internados em UCI se tem mantido estável", refere, destacando ainda que "há um ano, havia mais de 6 mil pessoas internadas, quase um milhar em UCI. Quem trabalhava com a covid só tinha doentes graves com covid, não eram doentes com outras doenças graves", destaca, acrescentando que dos internados ontem no país "poucos serão os que lá estão devido à covid-19".
Segundo os dados da DGS, o número de internados em UCI tem oscilado no último mês e meio, mesmo na semana com maior número de casos, entre os 150 e os 170.
Um facto inegável é que a esmagadora maioria dos doentes está em UCI por ter outras doenças graves e não pela covid-19. E isto tanto acontece nas UCI como nas enfermarias, quer sejam doentes adultos jovens ou mais idosos. Mas nesta fase da pandemia, e comparativamente com o que acontecia há um ano, têm chegado às UCI pessoas com idades ligeiramente mais avançadas, refere Nuno Catorze.
Alguns estão vacinados com as duas doses, outros já com a terceira, mas há pouco tempo. Há também quem lá chegue por não estar vacinado e desenvolver formas graves da doença. Pedro Póvoa sublinha que outra diferença tem que ver com o facto de "há um ano não haver pessoas vacinadas em UCI, muito poucas estavam já vacinadas". Além disso, "estávamos todos em casa, hoje fazemos a nossa vida normal".
Nuno Catorze diz que na sua unidade, neste momento, não tem "um único doente não vacinado, mas no final de novembro e princípio de dezembro eram 50% dos internados", com a diferença que a maioria era "de faixas etárias mais jovens, entre os 30, 40 e 50 anos, e saudáveis". Agora, sublinha, "a maioria dos doentes são vacinados, que não fizeram dose de reforço ou que fizeram há relativamente pouco tempo, e que, independentemente da idade, têm comorbilidades, diabetes, doença coronária, insuficiência renal crónica, artrite reumatoide, doenças autoimunes, as quais, por si só, já são determinantes na diminuição da qualidade do seu sistema imunitário, tornando-os doentes de alto risco para o SARS-CoV-2".
O médico do CHMT dá ainda como exemplo uma doente que recebeu com infeção urinária grave, que testou positivo quando chegou ao hospital e um outro que teve de ser operado de urgência à apendicite, e que no rastreio deu positivo. "Todos os doentes operados que testaram positivo tiveram de fazer pós-operatório na nossa unidade."
Pedro Póvoa refere que em termos de idade a sua experiência indica que não mudou muito. "Continuamos a ter doentes dos 40 aos 80 anos. Sempre foi assim. Temos é alguns doentes saudáveis nas faixas etárias relativamente jovens, que não estão vacinados."
Mas teve ainda doentes que estavam a fazer terapêuticas imunossupressoras, porque tinham transplantes cardíacos ou renais, que foram infetados, outros com infeção renal grave, com enfarte ou até politraumatizados. Nestes doentes, "a covid foi um epifenómeno. Não foi bom, mas não teve gravidade. Foi doença ligeira, se os doentes tiveram de ser ventilados foi por causa das doenças que já traziam e não por causa da covid".
Quando questionado sobre se tal facto também poderá ter que ver com a variante Ómicron, considerada mais contagiosa mas menos severa do que a Delta, Pedro Póvoa diz que se não há mais doentes em UCI é por causa das vacinas. "As vacinas podem não ter uma proteção brilhante na transmissão da doença, mas têm em relação à doença grave e à morte. Isso é mais do que evidente. Se não fosse isso, esta fase da pandemia tinha sido uma desgraça. Dizer-se que a Ómicron é uma variante boazinha, ou mais leve, não sei se é bem assim. A Ómicron aparece quando já temos uma taxa de vacinação muito elevada. O que me faz pensar que se não fosse a vacina teria sido muito mau."
Nuno Catorze recorda ao DN que há um ano tinha 18 internados com doença grave na sua UCI. Ontem, tinha duas pessoas, e não devido propriamente à covid, mas porque testaram positivo, assumindo mesmo que hoje a grande dificuldade "são os outros doentes, os não covid": "Não só em número como em qualidade. Chegam já muito doentes, o que prova que houve aqui uma falha redundante por parte dos cuidados primários e da saúde preventiva. Voltámos a ter doentes com neoplasias com sinais de gravidade, tuberculoses pulmonares, o que não se via há muito tempo, e quadros meníngeos em doentes que não são imunodeprimidos, o que não era comum há uns tempos."
Esta é a realidade descrita por estes médicos de unidades de Lisboa e Vale do Tejo, mas, como dizem, não é diferente do que se passa no resto do país e até a nível da Europa.