O que Marcelo quer mudar na lei? O artigo 69.º do Código Administrativo
"Casos de impedimento." Ou seja: em que circunstâncias é que "os titulares de órgãos da administração pública e os respetivos agentes", bem como "quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos", "não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da administração pública."
É isto que determina o artigo 69.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA, decreto-lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro). E é neste artigo que o Presidente da República sugere que se faça uma "alteração muito pequenina" para limitar as possibilidades de os políticos nomearem familiares para cargos públicos.
Na alínea b) do n.º 1 do dito artigo diz-se que os abrangidos pela lei "não podem intervir" quando tenham interesse direto (ou através de representantes) no "procedimento administrativo" ou no tal "ato ou contrato de direito público".
Ou quando estejam envolvidos o "cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges" (uniões de facto); "bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil".
Já quanto à família, a lei fala em "parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral". E será aqui que Marcelo Rebelo de Sousa quer que se mexa.
O Presidente já disse que a lei poderia ser alargada até abranger os primos dos titulares de cargos públicos. Ora, um primo - o caso da nomeação que levou à demissão do secretário de Estado do Ambiente Carlos Martins, na quinta-feira passada - não está abrangido pela expressão "parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral" (dito de outra forma: Carlos Martins não terá feito nada de ilegal).
Na verdade, essa expressão só abrange avós, pais, filhos, cônjuges e cunhados. E se a expressão fosse alterada para "terceiro grau da linha colateral" os primos continuariam a não estar abrangidos: só os tios e os sobrinhos. Assim, para a lei apanhar os tais primos teria de referir os parentes em linha reta ou até ao quarto grau da linha colateral. Por arrasto, apanharia também os tios-avós.
Até agora, nenhum partido avançou nenhuma disponibilidade para fazer a vontade ao Presidente - nem mesmo o PS, que foi o que, através do primeiro-ministro, falou na possibilidade de a comissão parlamentar da Transparência debater o assunto. Segundo um advogado ouvido pelo DN, o CPA abrange também os atos administrativos praticados por membros do governo.
Seja como for, nada do que o Presidente sugeriu parece incidir sobre a esmagadora maioria dos casos que têm sido noticiados sobre as teias familiares nas nomeações do PS. Porque, nestas, do que se trata é de políticos a nomearem familiares de outros políticos e não os seus próprios familiares (nesta medida, o caso do secretário de Estado do Ambiente foi único).
O Presidente da República defendeu nesta segunda-feira que mudar a lei da nomeação de familiares para cargos na administração pública exige uma alteração "muito simples" e "muito pequenina", não sendo necessário um novo diploma.
Em declarações ao jornal i, Marcelo Rebelo de Sousa falou nas tais alterações "muito simples" e "pequeninas" e disse que "aquilo que se propõe é saber se aquilo que existe para a administração pública em geral se aplica ou não aos gabinetes dos políticos, ou seja, dos parlamentares e dos governos. É só isso". Segundo acrescentou, é com casos destes que surgem "os populismos".
Na sexta-feira passada, Marcelo Rebelo de Sousa já tinha falado do caso da França, onde, desde 2017, quando um responsável político nomeia um familiar de outros titulares de órgãos políticos, "isso é comunicado a uma alta autoridade para a transparência".
Questionado sobre se o problema não é mais ético do que legal, o Presidente da República lembrou que, quando o Código do Procedimento Administrativo foi elaborado, "também havia uma questão ética, mas ninguém ligava muito à questão ética".
"Na altura [a ética] não chegava, na administração pública era possível legalmente nomear irmãos, nomear filhos, nomear pais, nomear tios, nomear sobrinhos e houve regras que foram definidas porque se entendeu que a ética não chegava, era preciso a lei", salientou.
Marcelo Rebelo de Sousa escusou-se, contudo, a responder diretamente se existe falta de ética, alegando que a polémica dos últimos dias "significa que o país mudou no seu juízo de ética social". "O país admitia coisas há 20 anos, há 30 anos, dez anos, que hoje não admite", disse, salientando que hoje não é considerado normal ter secretárias ou adjuntos familiares. Por isso, insistiu, "essa mudança de sentimento ético e jurídico na sociedade portuguesa deve ser acompanhado de uma mudança de lei".
O Presidente da República reconheceu, contudo, que em final de legislatura há muito pouco tempo para ponderar "matérias destas, consideradas sensíveis". "Mas o que não é possível é indignarem-se com situações que existem e não se indignarem ao ponto de considerarem que não é de pensar duas vezes e se definirem regras e acolher princípios sobre essas situações", afirmou, admitindo que "já ficaria muito satisfeito" se a questão fosse debatida neste período eleitoral.