O que há de novo nas velhinhas fake news?

Boatos, falsidades, notícias que atropelam o rigor, mentiras tantas vezes repetidas que se tornam verdades em que muita gente acredita. Bernardo Pires de Lima escreve sobre esse conceito antigo que agora ganhou nome moderno. A única coisa nova? As redes sociais.
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Desde a invenção da (im)prensa por Gutenberg, há 580 anos, que a boataria anda enrolada com a mentira e o preconceito se deita com a demagogia. Com origem política ou religiosa, os factos impressos e difundidos escapavam à verificação e seguiam caminho, transformando o Terramoto de Lisboa numa punição divina contra pecadores propagada por gerações, a ignóbil escravatura norte-americana numa atmosfera de medo provocada por ondas de crime contra a população branca, ou a inexistência de violações em ondas de choque público para acomodar um clima de guerra entre Espanha e Estados Unidos, no final do século XIX. Passemos aos avassaladores ódios tribais contra minorias e chegamos num ápice ao totalitarismo sanguinário do século XX, esse abusador do superlativo identitário e do hiperbólico narrativo, criadores imperiais de máquinas de destruição maciça. Esta constante manipulatória, que faz de cada número alcançado um feito jamais inigualável por qualquer outro povo, percorre abundantemente o discurso nazi, como estudou o linguista alemão Victor Klemperer em The Language of the Third Reich, fazendo da métrica trumpista tuiteira uma recauchutagem de más memórias.

A imprensa foi acompanhando a construção deste espaço público, tornando-se numa primeira fase (séculos XVIII e XIX) no prolongamento doutrinário de partidos políticos, animando o fervor de causas e depreciando adversários. A partir do momento em que a publicidade entrou nas receitas do jornalismo, este passou a falar mais para consumidores do que para partisans, focando a atenção dos seus auditórios nos conteúdos produzidos, muitos deles embrulhados em sensacionalismo propositado. Hoje esta máquina produziria cliques imparáveis, na segunda metade do século XIX, primeira do século XX, competição acesa pela venda de exemplares. Foi este o modelo seguido, por exemplo, pelo The New York World, propriedade de Joseph Pulitzer, ou do The New York Journal, de William Hearst, figura que serviria de inspiração a Orson Wells, em Citizen Kane.

É no pós-guerra que a responsabilidade social passa a ser assumida pelos grandes jornais, juntando o compromisso pela verdade dos factos a um desígnio comercial proveitoso. Maior objetividade noticiosa, mais mundivisão preparada e escrutínio dos poderes públicos, foram acompanhando a exigência de leitores mais escolarizados e progressivamente comprometidos com a consolidação das democracias. A imprensa não só acabou por estabelecer os princípios da normalidade do debate público como definiu o perfil dos seus inimigos, as fronteiras do intolerável e os abusos inadmissíveis. À entrada da terceira década do século XXI, vemos como estes momentos da história da informação, mais demagógica ou mais sóbria, continuam a marcar a produção noticiosa, tradicional ou digital, a traçar o prestígio das marcas e a conduta das empresas que lhes dão abrigo.

A desinformação, a propaganda e a mentira fazem parte da informação produzida e consumida desde que a sua massificação deu à luz com o advento da imprensa. Não é isto que é novo. O que é realmente uma novidade é a convivência no tempo e no espaço da ascensão incontrolável das redes sociais como veículo informativo em competição desregulada com uma imprensa tradicional em declínio. Este momento histórico, mesmo que sedeado em métodos ancestrais, tem produzido efeitos absolutamente perversos à saúde das democracias e à estabilidade da convivência social, projetando os seus resultados numa espiral indomável de erosão do futuro próximo.

Encaramos já o facto com normalidade, mas vivemos numa sociedade em vigilância permanente, controlada de fio a pavio, guardada perpetuamente na produção maciça de dados. Pura e simplesmente deixou de haver separação entre esfera pública e privada. Deixámos de ter direito à privacidade. E parte da responsabilidade é nossa, que nos deixámos inebriar pelos encantos da confissão permanente e da exibição entusiástica. Tudo se dilui num espaço público partilhado ao segundo, num rasto digital à mercê de quem o quiser manipular. Cada compra, cada visualização, cada retweet, é uma confissão pública identitária, comportamental, definindo um perfil consumista. A excentricidade amadora anda de braço dado com o lixo comercial direcionado. E enquanto a atenção impera, a interpretação da verdade desespera.

No meio das nossas fragilidades, mascaradas de exibicionismo em silos tribais inconciliáveis, somos carne para canhão de máquinas sofisticadas de desinformação, mentiras, demagogia, proveitosas a qualquer projeto político existencial.

Nos EUA, o modelo de negócio da Cambridge Analytica e o advento da revolução trumpiana resultaram no casamento perfeito de desconstrução do real, num momento-chave da história política americana: a hipótese de a primeira mulher chegar à Casa Branca depois de o primeiro afro-americano lá ter vivido. No Reino Unido, a saída ou não da União Europeia, ofereceu às teorias da conspiração um singular momento de propagação, com especial fervor para a mentira online em série produzida do exterior, e para o papel da imprensa tradicional na propagação de mitos políticos que acentuaram o medo e o tribalismo em setores cirurgicamente trabalhados.

Nunca é demais recordar que uma deputada, Jo Cox, foi barbaramente assassinada em plena campanha do referendo por um neonazi. Neste "mundo tribal binário", como descreveu Charlie Sykes, um dos poucos conservadores americanos arrependidos, os eleitores toleram comportamentos bizarros, desonestidade e crueldade, apenas porque consideram o outro lado sempre pior. O corolário aí está: nem a milésima mentira de Boris Johnson inibiu os eleitores de lhe darem uma confortável vitória eleitoral nem a enésima patifaria de Donald Trump parece vergar a sua base de fanáticos com vista à reeleição. Estamos mais longe de distinguir a verdade da falsidade e a demagogia da razão. É a paz social que paga, é a saúde das democracias que definha.

A intromissão russa nas eleições americanas e no referendo do Brexit não está apenas documentada e provada como é bem mais profunda do que o mero aproveitamento de dois momentos políticos singulares. A linguagem incendiária de Lenine, recordada por Victor Sebestyen em Lenin: The Man, the Dictator, and the Master of Terror, permanece viva entre os populistas do século XXI, os "neobolcheviques" como lhes chamou Anne Applebaum, numa recusa inflexível do compromisso, num choque propositado entre grupos sociais, na menorização de uns em função da superioridade identitária de outros, na ilegitimidade dos adversários, terminando na imprensa tradicional como "inimiga do povo". Não há descrição de Trump que melhor encaixe. Como confessou Steve Bannon numa entrevista a Michael Lewis, "fomos eleitos devido ao drain the swamp, lock her up, build a wall. Isto foi puro ódio. Ódio e medo são o que levam as pessoas às urnas".

A receita alastrou. Jair Bolsonaro não precisou da televisão nem dos jornais tradicionais para ser eleito presidente do Brasil, bastou aproveitar o ódio contra o PT e potenciar a demagogia e a mentira entre milhões que batem recordes de utilização das redes sociais. Os brasileiros estão em terceiro do mundo no WhatsApp, em quarto no Facebook e em sexto no Twiter. A construção de uma máquina de proliferação de mensagens propagandísticas e de ataque continuado contra adversários, vistos como inimigos, contrastou com a utilização tradicional feita por outros candidatos. Mais uma vez, o ódio e o medo juntos conduziram os brasileiros às urnas. E à vitória de Bolsonaro.

O fecho deste círculo apocalíptico está na redução do Estado a pó, ou seja, das instituições e regras que têm sustentado as democracias liberais. Sobre isto vale a pena lembrar o que disse Bannon ao The Daily Beast, três anos antes da eleição de Trump: "Lenine queria destruir o Estado e esse é, também, o meu objetivo. Eu quero implodir tudo e destruir o establishment do presente". Às vezes quando ouvimos o canto da sereia dos liberais mais puros em Portugal percebemos porque vivem de amores com o trumpismo e o bolsonarismo. Tudo isto poderia estar acantonado numa franja populista enraivecida, não tivesse entretanto feito um caminho de contaminação do que chamam "nova direita", que mais não é do que dar mau nome à boa moeda do liberalismo sensato e da direita democrática, essenciais para preservar a sanidade dos equilíbrios políticos, a modernização das instituições e a concretização de indispensáveis reformas. A revolução leninista vive tanto à esquerda como à direita.

Se o populismo ascensional pode ser combatido com a demonstração transversal da maturidade democrática, a proliferação da mentira e da demagogia deve ser travada com a emergência da verdade jornalística e da seriedade na política. Orwell dizia que "o caos político está ligado à decadência da linguagem", um espelho do presente que se impôs: abrutalhadamente tuiteiro, abundantemente espalha-brasas. Trump é o fiel exemplar do declínio da linguagem na política e da ética no espaço público. A questão que se coloca, face ao aparente fatalismo, é saber se ainda vamos a tempo de lhe restituir alguma decência no futuro?

Vai ser preciso que os seus agentes digam presente. Uma moderação política aliada à feitura atempada de políticas públicas assente em compromissos sociais alargados. Com uma mensagem política melhor trabalhada, mais inspiradora que destruidora, que faça a ponte entre gerações e evite atirá-las para um conflito desnecessário. Um jornalismo que reocupe um espaço central na sociedade, indiferente se analógico ou digital, o que importa é a qualidade do conteúdo, a seriedade do escrutínio que exerce aos poderes públicos e privados, a qualidade da sua escrita. E, já agora, a estética do seu produto.

Mas estas condições, desprovidas de recursos indispensáveis, não produzem jornalismo, criam meros boletins informativos. Sem um jornalismo que se imponha pela categoria do seu trabalho fica livre o caminho para a proliferação desinformativa e demagógica à distância de um smartphone. É preciso acabar com a ideia de que "em cada cidadão há um jornalista", num tempo em que nunca foi tão importante salvaguardar a separação de poderes, livrando a democracia liberal das mãos daqueles que a querem implodir, cavalgando a onda digital descontrolada para destruírem a paz social, o diálogo intergeracional e as instituições. Não há democracia no futuro sem partidos sólidos que afastem as más práticas corruptivas do seu interior. Mas nunca, como hoje, o jornalismo se tornou no barómetro do futuro das democracias: ou cai com elas ou contribui para a sua regeneração. Mantenhamos Lenine lá longe no mausoléu.

Investigador universitário e analista de política internacional

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