Acabar com os dois tipos de violação hoje existentes, ou seja, com a existência de uma violação "com violência" e outra "sem violência". Aumentar a pena para este crime e, no caso do PAN, impossibilitar a aplicação de pena suspensa, ao colocar o limite mínimo nos seis anos (só podem ser suspensas penas até cinco)..Integrar o crime de abuso sexual de pessoa inconsciente ou incapaz de resistência nos crimes de coação e de violação (consoante o tipo de ato sexual em causa), acabando com aquele tipo penal. Acrescentar agravantes para os crimes de coação e violação. E torná-los públicos, ou seja, não dependentes de queixa..Este é o resumo das propostas dos dois partidos que hoje vão a debate na Assembleia da República, e que à partida não deverão reunir, como os próprios proponentes admitem, condições para serem viabilizados em votação na generalidade. Até porque o PS já terá recusado mexer nas penas, mesmo se em outubro o governo teria, de acordo com uma notícia do Expresso, anunciado querer aumentá-las..Sem consentimento ou com constrangimento?."O nosso projeto não tem condições para passar tal como está", admite o deputado do PAN ao DN. Já Sandra Cunha, do BE, confessa não ter ainda percebido o que pode esperar dos outros grupos parlamentares..Em todo o caso, a esperança de ambos é que seja possível os projetos baixarem à Comissão da especialidade sem votação, encontrando-se aí terreno comum para alterar o Código Penal de forma a melhorar a definição destes crimes e, como defendem, transpor de forma correta para o ordenamento jurídico português a Convenção de Istambul. Esta está em vigor desde 2014 e impõe aos estados signatários, que incluem Portugal, a definição dos crimes sexuais com base na não existência do consentimento.."Importa clarificar a lei, estipulando-se que é na inexistência de consentimento e não na existência de violência que deve radicar a natureza do crime." Este objetivo, que se lê no projeto de lei do BE, é comum às duas iniciativas. Mas só no caso do PAN a palavra consentimento é usada na tipificação dos crimes de coação e de violação - "Quem, sem o consentimento da outra pessoa (...)" --; o BE usa o termo "constranger"..A expressão "constranger" é a que é usada nas atuais definições dos crimes de coação e de violação, mas com uma gradação. Assim, no artigo 164º do Código Penal, que tipifica o crime de violação, lê-se, no respetivo número 1: "Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos." E no número 2: "Quem, por meio não compreendido no número anterior" -- ou seja, sem usar violência, ameaça grave, ou não a tendo posto inconsciente ou na impossibilidade de resistir --, constranger outra pessoa aos mesmos atos, sendo punido com pena de um a seis anos. (Os dois números definem assim dois tipos de violação - uma mais grave, quando inclui violência - aqui aparentemente definida como violência física --, e outra menos grave)..O crime de coação sexual, tipificado no número 163 do CP, e que se distingue da violação pela inexistência de penetração, tem o mesmo tipo de terminologia..Estas redações resultaram dos trabalhos, efetuados em 2015, de transposição da Convenção de Istambul. Na altura, o Bloco de Esquerda quis que a expressão "não consentimento" figurasse explicitamente no artigo 164º, indicando, em sucessivas alíneas, várias formas de agravação, incluindo aquelas que são referidas no atual número 1 do artigo. Agora, deixou cair a expressão mas mantém a segunda proposta. O limite máximo das penas é mantido, mas no caso da violação o mínimo fica nos cinco anos (ou seja, mais dois anos que atualmente)..Violência física passa a agravante.Sendo que aquilo que antes constituía o tipo do crime, no seu número 1 - o uso de violência - agora agrava a pena num terço dos seus limites máximo e mínimo (ou seja, de seis anos e seis meses a 13 anos e três meses). O que significa, claro, um aumento das penas. E que nas condenações por violação com uso de violência física seria impossível suspender a pena..Já o PAN sobe e muito a pena para violação: o limite mínimo é, como já foi dito, de seis anos, e o máximo passa para 12 - e em determinadas circunstâncias, por exemplo quando se verifique "violência de especial gravidade", para 16. Um limite máximo mais elevado que o existente neste momento para este crime, mesmo tendo em conta as agravantes tipificadas no artigo 177º: este não ultrapassa 15 anos, mesmo quando da violação resulte o suicídio ou morte da vítima - o que contrasta com o limite máximo da pena para um roubo do qual resulte a morte do roubado, e que é de 16 anos de prisão (sendo o limite mínimo de oito, ou seja, ainda assim mais elevado que na proposta do PAN)..Uma outra novidade no projeto do PAN é a de acrescentar nas agravantes (ou seja, no artigo 177º) o facto de a vítima estar inconsciente, o que aumenta a pena em um terço no limite mínimo e máximo. Ou seja, aquilo que antes era a tipificação do crime 165º (abuso sexual de pessoa inconsciente ou incapaz de resistência), passa a ser agravante nos crimes de coação e violação. Neste último, a pena passaria a ser de nove a 16 anos. O que mais uma vez compara com as penas do crime de roubo quando se verificam circunstâncias agravantes como o bem roubado estar num local fechado à chave ou a vítima encontrar-se numa situação de especial debilidade (por via de "um desastre", "acidente" ou "calamidade pública"): o limite máximo é de 15 anos..Quanto à transformação do crimes de violação em crime público, comum aos dois diplomas, é explicada pelo BE como visando "retirar o ónus que a lei e a sociedade persistentemente impõem às vítimas. É, pois, de inteira justiça que se proceda também a uma alteração da natureza destes crimes, passando de semipúblicos, para crimes públicos. Num juízo análogo ao que se levou a cabo para a violência doméstica, temos de reforçar a ideia de que a violação e a coação sexual são assuntos que não podem ficar por investigar.".No mesmo sentido vai o PAN: "A importância atribuída à natureza do crime é manifestada, a título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02 de Maio de 2012, o qual estabelece que "o legislador quando confere natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública (interesses esses que não podem depender da vontade de particulares apresentarem ou não queixa)". O facto do nosso ordenamento jurídico atribuir natureza semipública a crimes com esta dimensão de gravidade espelha bem a desconsideração com requintes de anacronismo legislativo face à realidade.".Mudar a lei para "ensinar" os magistrados.A discussão sobre a necessidade de alteração da tipificação dos crimes sexuais decorre há algum tempo em Portugal -- e noutros países, tendo vários alterado já o respetivo Código Penal -- e intensificou-se em setembro, após ter sido tornado público o acórdão da "sedução mútua". Neste, o Tribunal da Relação do Porto, invocando um "clima de sedução mútua" e o facto de "não ter havido violência", suspendia a pena de quatro anos de prisão aplicada a dois homens que violaram uma jovem, quando esta estava inconsciente, na casa de banho de uma discoteca de Vila Nova de Gaia..A esse propósito, uma representante da Associação Sindical de Juízes (ASJP), Carla Oliveira, afirmou mesmo na SIC-N que "não basta não haver consentimento para haver violação" e que "para que exista violação no sentido jurídico precisamos essencialmente que o arguido tenha colocado a vítima na impossibilidade de resistir - será o caso de colocar uma droga qualquer numa bebida -- ou o caso de usar violência, isto em termos gerais. (...) Quando não se demonstra a existência de violência, não podemos entrar no crime de violação.".Um entendimento que também o juiz desembargador e anterior presidente da ASJP, José Mouraz Lopes, partilha, ao considerar que "o legislador não assumiu, ainda e apenas, no não consentimento da vítima a fronteira entre o lícito e o ilícito"..E uma das grandes autoridades portuguesas em Direito Penal, Jorge de Figueiredo Dias, cuja visão informou a geração mais idosa dos juristas - e juízes - portugueses, escrevia ainda em 2012, já após a existência da Convenção de Istambul, sobre o artigo 164º do CP: "Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer resistência corporal.".Ou seja, parece haver por parte de uma parte dos juízes e mesmo dos especialistas em Direito Penal uma renitência em assumir os princípios da Convenção de Istambul apesar de ela ter, como tem frisado a presidente da Associação das Mulheres Juristas, a juíza desembargadora Teresa Féria, "aplicação direta"..Haverá então, como se lê na proposta do BE, uma "desculpabilização e naturalização destes crimes, assim como a responsabilização e objetificação das mulheres", que "radicam e, simultaneamente, justificam a cultura de tolerância e desvalorização dos crimes sexuais sobre as mulheres que, lamentavelmente, ainda persiste na sociedade portuguesa." O mesmo considera o PAN, ao dar exemplos de decisões judiciais que vê como desculpabilizadoras e ao pugnar pela necessidade de fomentar "uma crescente consciencialização social (onde se incluem os Magistrados) da gravidade deste tipo de crimes.".Clarificar a lei servirá então, na visão destes dois partidos, para que quer a sociedade quer os magistrados "atualizem" a sua visão dos crimes sexuais e não possam mais continuar a defini-los, mesmo contra a letra da atual lei, a partir do uso de violência física e da maior ou menor "resistência" da vítima.