O primeiro campeão português vai voltar a surfar aos 58 anos
Quando Almir Salazar atravessou o Atlântico em direção a Lisboa, em 1990, profissionalização era uma palavra que não existia no surf português. O brasileiro, várias vezes campeão paulista, vinha de um meio mais desenvolvido. Passado o auge competitivo, acabou por se mudar para Portugal e estava longe de saber que teria um papel determinante na evolução da modalidade. "Vim para cá por duas coisas: competir e trabalhar. Na altura (1989) era patrocinado pela Lightning Bolt e, numa feira de surf, eles propuseram ao Álvaro Costa (fundador da Polen Surf-boards, marca portuguesa de pranchas) eu vir para Portugal trabalhar como shaper e correr com as pranchas dele", começou por explicar ao DN.
Almir chegou em junho de 1990, poucos dias antes de um campeonato Open na Praia Grande. Inscreveu-se e participou. O mar subiu, o brasileiro vinha com ritmo competitivo e acabou por ganhar. Um prenúncio para o que se seguiria. Depois dos títulos no Brasil, o seu nome ficaria na história do surf português como o primeiro campeão nacional.
Prémios em roupa e pranchas
Viveu em Portugal até 1995 e voltou várias vezes durante a década seguinte. Aos 58 anos, retomou a atividade de shaper na Polen e foi convidado para participar no Huawei Cascais Pro (6 a 8 de outubro), a última etapa da Liga Moche, onde se vai decidir o campeão nacional.
"Tenho quase 60 anos, é mais para brincar, rever as pessoas, ver a nova geração e tentar entender o mundo do surf. Se puder ajudar de alguma forma, fico satisfeito. Tem muita gente boa aí para despontar no panorama mundial. É uma nostalgia enorme. O meu tempo passou. Mas é gostoso, agradeço o convite. Acho que vai ser muito bom", confessa.
Antes de Tiago Pires colocar o país no mapa do surf mundial, Almir Salazar desempenhou um papel importante. Quando subiu ao pódio pela primeira vez em Portugal, o surfista descobriu que não havia prémios em dinheiro. "Era apenas roupa, pranchas, fatos... eu vinha do Brasil, onde já havia profissionais e prize money nos eventos. Comecei a conversar com os meus colegas "porque é que não propomos aos organizadores dar dinheiro em vez de pranchas, porque nós gastamos dinheiro para ir aos campeonatos?". Foi aí que começámos a planear isso."
Almir reuniu o apoio dos surfistas mais conhecidos dessa geração, "o Herédia, o Gregório, o Antunes, o Anastácio", e quando se realizou o primeiro circuito nacional, em 1992, "já havia prize money". Na primeira etapa Salazar estava fora do país, mas entretanto conseguira a dupla nacionalidade. Regressou, ganhou a segunda prova e na terceira teve uma surpresa: "Quando viram que havia dinheiro, que eu podia ganhar a etapa e vencer o circuito, diziam que eu era brasileiro. Os surfistas reuniram-se no palanque e queriam afastar-me. Já tinha acontecido com outros atletas de fora, se não fosses português não podias correr. Eu acabei por mostrar o BI à organização e competi. Aquelas coisas eram naturais, havia um certo ciúme e receio. Depois, todo o mundo ficou meu amigo, agora é até engraçado reviver esses tempos", recorda o luso-brasileiro.
Foi na prova decisiva na Ericeira que Almir acabaria por ser o primeiro campeão português. "O pessoal não gostou porque eu vinha de fora. Depois acabou por passar. Foi um início difícil, mas foi um arranque para o surf português", afirma. A vertente profissional que trouxe do Brasil ajudou à competitividade no surf nacional não só dentro de água como na remuneração dos atletas. "Na verdade, o circuito foi muito bem organizado, cinco etapas maravilhosas. Havia bons prémios, viagens para o Havai... Naquela época o prémio era em escudos, acho que o vencedor da etapa recebia 70 ou 80 mil escudos [350 ou 400 euros]. Era um bom dinheiro." O luso-brasileiro adaptou-se rapidamente e em 1992 foi vice-campeão europeu. Em 1993 e 1994 venceria o título nacional de longboard.
Diferenças em 20 anos
Portugal tinha surfistas talentosos, mas só nos anos 2000 o país chegaria ao WCT (elite do circuito mundial), através de Tiago Pires. Porquê a demora? "Havia surfistas a nível europeu muito fortes. O Dapim, o Antunes, o Herédia, o Anastácio... mas quando se saía para fora, nos mundiais, não eram conhecidos. Hoje alguns atletas têm nível mundial. Foi uma evolução muito rápida. Acredito que num curto espaço de tempo Portugal vai colocar pelo menos um atleta no WCT", diz Almir.
Mais de 20 anos depois, quando entrar na água para a última etapa da Liga Moche, Almir vai matar saudades da competição, ao mesmo tempo que encontrará um circuito que já é considerado o mais forte da Europa (neste ano a Liga atribui mais de 80 mil euros em prémios). "Era engraçado porque na altura as primeiras baterias eram folgadas. Então deixava a prancha de reserva à beira da água, ganhava a bateria e às vezes saía para pegar a outra prancha. Havia poucos surfistas bons", conta.
Hoje, Portugal é uma das potências de surf europeu. E a distância para os anos 1990 não se fica por aí. "Noto muita diferença. Trabalha--se com computação nas notas, há internet diretamente para ver os heats ao vivo. Na altura, não havia telemóveis, era muito mais difícil. Hoje o locutor diz quantos minutos faltam, as notas que os atletas precisam. Isso ajuda muito", afirma o surfista.
Salazar construiu também uma reputação como shaper que lhe permitiu voltar novamente a Portugal. Depois de tanta ida e volta, será desta que assenta aqui? "Voltei para trabalhar na Polen, em que já tinha estado até 1995. Agora devo ficar definitivamente, estou com os meus dois filhos e a minha esposa. Gosto muito de Portugal, adoro o clima, e no que puder contribuir para o surf contem comigo."