O presidente francês que sonhou ser líder da Europa (e amante da princesa Diana)
O antigo presidente da República morreu na quarta-feira, com 94 anos, na sua propriedade de Authon no Loir-et-Cher, centro do país. Tinha sido hospitalizado várias vezes nos últimos meses por problemas cardíacos, e agora terá sucumbido ao novo coronavírus.
Em 2016, Marcelo Rebelo de Sousa entrou no Palácio de Belém a pé no dia da tomada de posse. Em 1974, Valéry Giscard d'Estaing (VGE, como é conhecido) abdicou da limusina e subiu os Campos Elíseos de fato e gravata em vez do fraque, como era do protocolo, ao entrar pela primeira vez no Palácio do Eliseu como chefe de Estado.
Também no início de mandato, Marcelo Rebelo de Sousa abriu os jardins do Palácio, tendo proporcionado as famosas selfies aos visitantes. Giscard d'Estaing, em 1977, decide abrir o Eliseu ao público e cumprimentar pessoalmente milhares de pessoas.
O Presidente da República português deu que falar quando, então candidato à Câmara de Lisboa, em 1989, se lançou nas águas do rio Tejo. Em 1976, VGE espantava os franceses ao ser filmado a nadar junto ao forte de Brégançon, a residência oficial de férias da presidência.
Giscard d'Estaing, que já levava duas décadas na política quando chega à presidência, é o mais jovem chefe de Estado gaulês de sempre, com 48 anos, em contraste com a imagem rígida e conservadora dos antecessores Georges Pompidou e Charles de Gaulle. Este foi o primeiro presidente que pernoitou no forte situado entre Nice e Marselha, mas sem banhos públicos e apenas por uma noite.
VGE era o primeiro líder francês desempoeirado. Antes de se tornar presidente, enquanto ministro das Finanças, aparece a tocar acordeão ou a jogar futebol na terra onde era autarca (Chamalières). "Um ministro das Finanças é um francês como os outros", dizia então, apesar do seu ar aristocrático.
A sua marca pessoal vai ser aprofundada na campanha presidencial, que vai beber nas estratégias de marketing político dos EUA. No cartaz da campanha aparece com a filha Jacinte, a mais nova dos quatro filhos do casamento com Anne-Aymone. A campanha teve outras inovações, como t-shirts, e o certo é que VGE venceu François Mitterrand.
Já como presidente, na defesa de uma "sociedade liberal avançada", subscreveu medidas como baixar a idade de adulto de 21 para 18 anos, ou despenalizar o aborto. Durante a sua presidência vive-se os efeitos do choque petrolífero de 1973 e o de 1979 - e o choque de personalidades com Jacques Chirac, que foi seu primeiro-ministro e depois um rival político do mesmo campo.
Na campanha para a reeleição rebentou o caso dos diamantes, que eclodiu em 1979. Le Canard enchaîné e depois o Le Monde acusaram-no de ter recebido diamantes de Jean-Bedel Bokassa, então presidente da República Centro-Africana, quando era ministro das Finanças. Resultado: foi derrotado por François Mitterrand em 1981, o que não estava nas suas contas. "Digamos a verdade, eu nunca tinha previsto a minha derrota", confirmou nas suas memórias.
Valéry Giscard d'Estaing nasceu a 2 de fevereiro de 1926, em Coblença, na Alemanha, onde o seu pai, Edmond Giscard, era diretor financeiro do Alto Comissariado francês na Renânia, uma região então ocupada pelo exército francês. A sua mãe, May Bardoux, era filha do senador e escritor Jacques Bardoux, vencedor do prémio da Academia Francesa.
VGE herda o gosto pela escrita e, além de livros de memórias e de ensaios, aventura-se no romance. O último, Loin du bruit du monde, foi lançado há um mês. "A partir do momento em que se pega na caneta está-se a falar de si próprio", disse em entrevista ao Le Figaro. Uma afirmação que, à luz do romance La Princesse et le Président pode ganhar novos contornos: neste livro publicado em 2009, os protagonistas são o chefe de Estado Henry Lamberty, o próprio, e a princesa Patricia, ou antes Diana de Gales.
Muito se especulou se o romance seria baseado em factos reais. Em 2010, num programa de TV, VGE disse: "Inventei os factos. É um romance em que a princesa Diana é a personagem principal. Tentei dar-lhe vida, como ela apareceu quando a conhecemos. Mas não exageremos. Conheci-a um pouco, numa relação de confiança", afirmou.
Quando Giscard entra na política, com 29 anos, já leva muito para contar. Com o país ocupado pelos nazis, obteve um duplo bacharelato, em filosofia e matemática, em 1942, com 16 anos. Depois de participar na Resistência, entrou para o Exército, em 1944, e lutou na Alemanha e na Áustria. Foi agraciado com a cruz de guerra.
Ao regressar à vida civil, entrou na nova Escola Nacional de Administração (ENA) em 1949, para se formar em 1952, e posteriormente entrar para a Inspeção Financeira. Três anos depois torna-se diretor-adjunto no gabinete do presidente do Conselho, Edgar Faure. Meses depois candidatou-se ao departamento de Puy-de-Dôme, o departamento onde a sua família foi eleita. Deputado entre 1956 a 1959, é neste ano promovido para um cargo governamental: primeiro é secretário de Estado das Finanças, depois é ministro das Finanças durante a presidência de Charles de Gaulle.
Prova da sua ambição política, em 1962, criou o grupo Republicano e Independente e trilha um caminho de descolagem do gaullismo, cujo auge se dá quando não apoia o general no referendo constitucional de 1969.
Na presidência de Georges Pompidou manteve-se como ministro das Finanças.
A sua política internacional é marcada pelo reforço da integração europeia. Para ele, a Europa era o "último grande sonho" depois da "decadência" de França, como afirmou ao Le Point na última entrevista concedida ao semanário.
Com o chanceler alemão, Helmut Schmidt, esteve por detrás da criação do Conselho Europeu em dezembro de 1974.
Juntamente com Schmidt, Valéry Giscard d'Estaing reforçou os laços entre a França e a Alemanha. Em 1978, é lançado o Sistema Monetário Europeu, sob o impulso da França e da Alemanha. O ECU, a unidade de moeda europeia, é criada no ano seguinte, tudo medidas que abriram a porta ao estabeleimento de uma união económica e monetária na Europa, a futura zona euro.
A sua visão ia para lá da Europa. Foi sua a iniciativa de reunir os cinco países mais industrializados do mundo (Estados Unidos, Japão, França, Alemanha Ocidental e Reino Unido) no Castelo de Rambouillet, em 1975.
Durante as eleições europeias de 1989, liderou a lista conjunta UDF-RPR, que incluía o partido por si fundado UDF, e entrou para o Parlamento Europeu. Presidiu também ao Movimento Europeu de 1989 a 1997.
VGE queria promover um relançamento da integração europeia e tornou-se presidente da Convenção sobre o Futuro da Europa em dezembro de 2001. O objetivo era simplificar os vários tratados através da elaboração de um projeto de constituição. A 29 de maio de 2003, recebeu o Prémio Carlos Magno por "fazer avançar o processo de unificação" na Europa, tal como Simone Veil que o recebeu em 1981, depois de ter sido a primeira presidente do Parlamento Europeu.
Em julho de 2003, Valéry Giscard d'Estaing apresenta a Constituição Europeia, que é assinada pelos 25 membros da União a 29 de Outubro de 2004. Mas o documento vai a referendo em França e passa à história. O "não" ganhou com 54,68% dos votos a 29 de Maio de 2004 e o projeto fracassa.
Na cultura, enquanto presidente, lançou as primeiras Jornadas do Património, organizadas em 1980, e em 1977 decidiu transformar a estação parisiense Orsay num museu, hoje um dos principais com arte do século XX. Na inauguração, dia 1 de dezembro de 1986, juntaram-se as três principais e opositoras figuras políticas da época, François Mitterrand, Valéry Giscard d'Estaing e Jacques Chirac.