"Uma piada", "um absurdo", "não levei a sério". Quando Donald Trump venceu as eleições americanas a 8 de novembro de 2016 - e mesmo antes, quando apresentou a candidatura - quase ninguém estava preparado para aquilo que parecia ser um gigante golpe de ficção desferido sobre uma sociedade profundamente dividida. Numa altura em que não se assumia a possibilidade, o historiador Allan Lichtman, numa entrevista ao The Washington Post, surgiu como o vidente do panorama político que previu, com alguma distância temporal (em setembro), a vitória do candidato-provocação. Segundo o próprio conta em Trump: O Presidente Acidental, acharam que não estava bom da cabeça ao afirmar semelhante coisa... E a verdade é que foram favas contadas..O documentário assinado por James Fletcher, que estreia em exclusivo nos canais TVCine na noite das eleições (22.00), faz uma retrospetiva das presidenciais protagonizadas por Trump, e menos por Hillary Clinton, para descodificar a surpresa que deixou, não só os Estados Unidos, mas também a comunidade internacional, com um nervoso miudinho. À boca das urnas, vale a pena olhar para trás e responder metodicamente à pergunta: como é que Trump chegou a presidente?.De Anthony Scaramucci, ex-diretor de comunicações da Casa Branca, a Aaron Sorkin, criador da série Os Homens do Presidente, passando pela diretora de campanha e ex-conselheira de Trump, Kellyanne Conway, o biógrafo Michael D'Antonio, entre outros jornalistas e comentadores, todos falam aqui sobre o fenómeno que estava a acontecer e que não se conseguiu avaliar em tempo real. "Ele candidatou-se para ganhar", diz Conway sorridente, mas há quem considere que, no princípio de tudo, era apenas um gesto de autopromoção, uma forma de estimular conversas à volta da imagem do empresário de sucesso, o "magnata", tal como ele se apresentava no programa The Apprentice (NBC)..YouTubeyoutubehIRNzyna4wc.Depois deu-se uma sucessiva leitura de sinais por parte do candidato: ele percebeu que resultava falar sem filtros, que uma campanha não se faz na base da ideologia mas sim através de emoções rasteiras ("quem está mais zangado com Obama?"), que os eleitores republicanos ansiavam por alguém fora do sistema, com espírito de street fighter (recorde-se o episódio no WrestleMania), e, mais importante ainda, percebeu que era capaz de dominar a narrativa das presidenciais através de declarações falsas e insultos diários, nomeadamente através do Twitter, que levavam os media a entrarem no seu jogo. Nem mesmo o discurso de teor racista o desqualificou... Ainda agora, no último debate presidencial, teve o descaramento de se afirmar "a pessoa menos racista na sala"..Tal como um dos entrevistados faz notar em Trump: O Presidente Acidental, na TV o vilão é sempre a estrela. E foi por aí que a brincadeira começou a pegar. "As notícias tornaram-se comédia", o mundo da política passou a confundir-se com o do entretenimento - tanto que, a certa altura, o partido republicano mais tradicional fez questão de se demarcar do estilo - e até o facto de Donald Trump ter começado a andar com um aparato de segurança pessoal idêntico ao do Presidente dos Estados Unidos, quando ainda era apenas um candidato, contribuiu para a consistência do seu espetáculo..Onde ficou Hillary Clinton no meio deste circo? Talvez tenha pecado por excesso de confiança na vitória, e também por precaução, esquivando-se a entrevistas e apostando tudo nos debates - onde foi, sem margem para dúvidas, superior ao seu oponente, que não tinha qualquer bagagem política. Mas importa lembrar também que entrou na campanha fragilizada pela divisão do Partido Democrata, com muita gente a identificar-se mais com a promessa do candidato Bernie Sanders, homem próximo da classe trabalhadora, juntando-se a isso o falso caso dos e-mails, que feriu a sua imagem, e a infelicidade de ter chamado "deploráveis" aos eleitores de Trump. Entenda-se: se o mesmo fosse dito pelo próprio sobre os eleitores de Hillary não teria um impacto tão negativo, porque a sua ausência de postura presidencial instalou uma espécie imunidade pública, um vale-tudo, como se viu perante as repetidas provas de como Trump era (e é) ofensivo para as mulheres..Contas feitas, ganhou o slogan "Make America Great Again" sobre o "Stronger Together" de Hillary, que nem chegou a ficar na memória. A interrogação com que nos deixa o documentário de James Fletcher é intuitiva: será que o enquadramento político mudou com as eleições de 2016? A resposta será dada pela escolha dos americanos no próximo dia 3 de novembro, entre o reality show grotesco de Donald Trump e a velha decência democrática representada por Joe Biden.