Ricardo dos Santos está habituado a correr, mas desta vez o lema "é agir e não fugir". O velocista português acusou a polícia de Londres de racismo e vai avançar com um processo em tribunal. Farto de ser mandado parar "simplesmente" por conduzir um Mercedes topo de gama, o atleta do Benfica entregou o assunto aos advogados: "Queremos mudar a forma de agir da polícia para que outros não sofram o que nós sofremos. Basta das pessoas fugirem do problema, é preciso mudar. O normal não pode ser eu sair de casa com a carteira, o telemóvel, as chaves do carro, e o medo de voltar a ser parado pelo polícia. E se hoje não acontecer, acontece amanhã... "".De um dia para o outro o Mundo deu-lhe atenção e Ricardo já se questionou várias vezes porque só "agora" as pessoas querem saber dele e da sua cor de pele. "Não deixa de ser algo ingrato, ser conhecido como vítima de racismo e não como atleta profissional. O grande problema disto é que acontece todos os dias e a gente comum, gente sem voz ou meios para lutar e ir para tribunal que permanece calada porque não há nada que possa fazer. E isso é muito mau. Eu não quero que o meu filho cresça com esse estigma. O que eu posso fazer como pai é ajudar a traçar um caminho onde ele não sinta racismo como os pais dele sentiram", explicou o português ao DN. Filho de país angolanos, Ricardo nasceu em Lisboa, mas não teve tempo para crescer em Portugal. A mãe emigrou para Londres quando ele tinha três anos e desde então vive na capital inglesa. Foi lá, ainda no colégio, que o atletismo entrou na sua vida, depois de uma tentativa no futebol. Era guarda-redes, mas sentia-se "seduzido" pela pista que circundava o estádio. "Nessa altura nem sabia o que eram sapatos de picos, para mim só havia as chuteiras, mas um dia um professor veio ter comigo e disse que eu podia ser mais ou menos bom no atletismo. Depois soube que ele era o diretor de atletismo. Mas a minha primeira reação foi "está maluco"", contou ao DN..No início foram as viagens que o convenceram. Com paixão pelo desconhecido, pela sétima arte e pela fotografia, o português viu no atletismo a oportunidade de viajar e conhecer sítios novos: "Comecei a treinar aos 15 anos e gostei do sistema, da disciplina, da sensação de liberdade. Quando estás na pista, os outros sete não querem saber dos teus problemas, só querem chegar antes de ti. Na pista sou eu contra o tempo e isso agrada-me.".Começou então a treinar três vezes por semana das 16.30 às 19.00. Era um "bocado preguiçoso", mas se faltasse não podia ir às provas e por isso a hora do treino tornou-se sagrada. Um dia percebeu que era mesmo isso que queria fazer na vida. "Em 2012 dei um salto, deixei de ser um menino e passei a ser homem e vi que podia ser atleta profissional. Nesse ano tive de mudar de treinador e comecei a ser treinado pelo Linford. Passei a treinar seis dias por semana e a fazer marcas surpreendentes. Depois do campeonato do mundo de júnior decidi apostar no atletismo. Fiz estágios nos EUA e na África do Sul e partir daí soube que era isso que queria fazer na vida", revelou o velocista de 25 anos. Passou a representar o Thames Valley de Inglaterra, mas não demorou muito até ser "descoberto" pelo Sporting em Londres. A ligação aos leões demorou pouco. Uma quebra de compromisso levou-o a trocar o Sporting pelo Benfica no final da época de 2013 e já depois de suspender o curso de informática para se dedicar a 100% ao atletismo. "O Benfica ofereceu-me algo que o Sporting não podia dar. Apoio médico à volta do Mundo. Como eu fazia muitos estágios e provas fora precisava dessa segurança", explicou ao DN, lembrando que a ideia de fazer parte da melhor equipa em Portugal também lhe agradava..Escolheu representar Portugal, mas ficou a treinar com Linford em Londres.Apesar de morar em Inglaterra desde os três anos não se sente inglês. As seis semanas de férias em Portugal por ano marcaram-lhe a personalidade e quando lhe falaram na possibilidade de correr por Portugal meteu-se num avião e foi a Lisboa tratar disso. "Foi uma coisa estranha. O meu primo foi-me visitar a Londres e disse-me que alguém da federação tinha entrado em contacto com ele depois de ver um Ricardo dos Santos Soares nos rankings de atletismo de Inglaterra, para perguntar se eu era português. Tentaram a sorte e pediram-me para ir a Lisboa falar com eles e foi assim". Decidiu representar a bandeira portuguesa, mas sem abandonar Inglaterra: "Não queria mudar de treinador. O Linford é um treinador muito bom, muito forte e sabe o que está a fazer. Era uma ligação que eu não queria perder, queria manter um certo nível de treino.".O raciocínio do português faz todo o sentido, tendo em conta que Linford Christie é um dos maiores velocista de sempre, campeão do mundo (1993) e olímpico dos 100 metros (1992). "O meu treinador decidiu abandonar Inglaterra e mudar-se para a Austrália. Disse-me que era muito amigo do Linford e que me ia recomendar. Ele veio ver-me e depois de analisar os meus tempos disse-me que se eu conseguia fazer os 400 metros em 47 segundos sendo treinado por um treinador do triplo salto ele podia fazer melhor. Foi aqui que comecei a trabalhar com ele", explicou Ricardo dos Santos..Ficou intimidado? "Um pouco. Tinha medo de me dirigir a ele, em Inglaterra ele é um Deus, um monstro do atletismo mundial, e estava ali a dizer-me como me posicionar na pista ou como meter o pé no chão na largada. Tem fama de rígido e mau, mas para mim é um bom amigo, uma pessoa honesta, que diz as coisas sem filtro e na hora e eu gosto disso", contou Ricardo, confessando que se fartam de "discutir" e fazer as pazes como um pai e um filho. Sob o comando do técnico inglês, o velocista subiu de nível competitivo. Em menos de dois anos estava a bater o recorde nacional dos 400 metros nos campeonatos da Europa de 2014 em Zurique. Pela primeira vez um português baixava dos 45 segundos. Ele tinha 19 anos e um futuro promissor, mas uma lesão grave interrompeu a progressão e comprometeu o apuramento olímpico para o RIO2016. O músculo da coxa direita rompeu e ele teve de ser operado:"O cenário era negro, os médicos diziam que eu tinha 10 a 12 meses de recuperação, mas eu nunca pensei que fosse o fim. Tenho uma mente forte e agarrei-me à recuperação.".A genética e o apoio do gabinete médico do Benfica entraram em campo para uma recuperação "milagrosa". Em menos de quatro meses, Ricardo estava a treinar. E isso era uma grande vitória, uma vez que teve de aprender a andar de novo e ganhar a massa muscular perdida. Em 2017 voltou às pistas e em 2018 bateu o recorde de Portugal por duas vezes, estabelecendo o máximo nacional nos 400 metros em 45, 14 segundos, no Europeu, em Berlim (na final, foi 7º com 45,78)..Agora o objetivo é correr abaixo dos 45 segundos - "estou muito, muito perto"- e representar Portugal em Tóquio2021. O adiamento dos Jogos Olímpicos foi "bom" para ele, mas não por motivos desportivos. Foi pai em março e isso deu-lhe tempo para estar em casa com ele e com a mulher. Ver o filho crescer "é impagável." Em vez de ir para os EUA preparar os JO, Ricardo ficou a mudar fraldas..Perseguido e algemado: "Parecia uma cena do tipo FBI most wanted".A pista foi o cenário perfeito para encontrar o amor numa inglesa. "Eu conheci a Bianca em 2012, em Barcelona. Tínhamos os mesmos amigos e durante uma conversa eu disse que fazia anos no dia 18 de dezembro e ela virou-se para mim e disse que também fazia anos nesse dia. Ela é de 1993 e eu de 1994. Começamos a falar, mas ainda demorou dois anos até namorarmos", contou o velocista, que hoje é casado com a especialista britânica dos 200 metros. E foi com ela que viveu "os piores 45 minutos" da vida.."Não foi um filme de terror, mas foi assustador. Parecia uma cena do tipo FBI most wanted (os mais procurados)". Ser arrancado do carro algemado e acusado de cheirar a canábis foi a gota de água para o português e a mulher e também atleta Bianca Williams. A polícia alegou que o recordista nacional dos 400 metros não obedeceu à ordem para encostar a viatura, depois de ter sido apanhado a conduzir no lado errado da estrada e em excesso de velocidade, o que ele nega. "Mentiram. Se fosse verdade teriam passado multas e não o fizeram", acusou, garantindo que não demorou mais do que 20 segundos a parar, assim como mostra o vídeo que a mulher gravou a partir do momento em que se sentiram perseguidos. Quando parou, ele a mulher foram puxados para fora do carro e algemados. "Quando chegaram perto de mim, estavam prontos para bater. Tiraram o bastão, tiraram-me o telemóvel e atiraram-me contra a parede. Gritei que tinha dores e eles disseram que eu cheirava a canábis", contou o português, confessando que se virou para a mulher e disse: "Bem vindo ao meu mundo".."Sem exagero", desde que o casal adquiriu uma viatura de luxo em 2017, já foram mandados parar 15 vezes. Uma delas, em 2018, deu origem a um processo. "Foi quase como agora, fui acusado de beber e nem me fizeram o teste e tive de limpar o meu nome", revelou o velocista português, que já este ano, em maio, quando passeava de carro com um amigo foi mandado encostar: "Disseram que era um carro suspeito." "Para quem nasceu preto" estas situações tornaram-se demasiado frequentes, mas Ricardo recusa fazer parte de uma Sociedade, que pensa que um cidadão de cor num bom carro é sinal de crime. A menos de um mês de regressar a Portugal para preparar o nacional de clubes no Jamor, o atleta esclareceu ainda que a polícia não pediu desculpa como foi noticiado: "Quando chegamos a casa estava um carro da polícia à porta, quando perceberam que éramos nós saíram para falar connosco, mas não pediram desculpa. Nunca disseram "Ricardo e Bianca I'm sorry". Isso seria reconhecer o erro, mas a forma como falaram connosco percebemos que lamentavam o sucedido, mas isso é muito diferente de pedir desculpa."