O prefácio de Tolentino Mendonça para o Diário de Etty Hillesum

<em>A Rapariga de Amesterdão</em> é o título do prefácio de José Tolentino Mendonça em pré-publicação para o <strong>Diário 1941-1943 de Etty Hillesum</strong> (Editora Assírio & Alvim), uma das vítimas do holocausto promovido por Hitler.
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«Eu fiz-me ouvir junto de quem não perguntou por mim. Deixei-me achar por quem não me buscou.» do Livro do Profeta Isaías (65,1)

A 9 de Março de 1941, quando Esther (Etty) Hillesum começou a escrever, no primeiro dos oito cadernos de papel quadriculado, o texto que viria a ser o seu Diário, estava-se longe de pensar que começava aí uma das aventuras literárias e espirituais mais significativas do século. Ela tinha vinte e sete anos de idade e morreria sem ter feito trinta.

Era a mais velha dos três filhos de um casal judeu, urbano, sem especial vinculação religiosa: Louis Hillesum, professor de línguas clássicas, e Rebecca Hillesum-Bernstein, emigrante russa (na verdade, foragida a um pogrom). Dos irmãos, Jaap destacou-se como investigador no campo das ciências médicas, e Mischa, o mais novo, embora atormentado por crises psicológicas devastantes, vem a afirmar-se como um dos pianistas de referência, na Holanda desse tempo. Etty dir-se-ia de outra espécie. Ela cunhou uma expressão para descrever o seu estado: «bloqueio espiritual». A sua vida escondia-se por detrás de um enigma contra o qual ela lutava, mas de forma errática e imprecisa.

Durante anos, a sua principal ocupação foi uma licenciatura em Direito, que a bem dizer lhe era indiferente. Atraída pelo estudo das línguas eslavas e da literatura russa (com graça, conta que, ainda em jejum, começava muitos dos seus dias lendo Dostoiévski), frequentou, esporadicamente, os círculos socialistas e libertários de Amesterdão. Projectava sem grande empenho um percurso literário... Mas a verdade é que os seus interesses intelectuais e estéticos demoravam a encontrar fluidez: «é como se lá bem no fundo houvesse... algo a prender-me». E era assim com tudo o resto. O próprio amor se configurava, nesses anos, a «um jogo» que a rodeava intensamente, sem conseguir tocar esse fundo secreto e encarcerado que era a sua vida.

Nesse domingo de Março, em que principia a sua narrativa, ela vive no número 6 da Rua Gabriël Metsu, já independente dos pais, mas no mesmo fervilhar hesitante entre possibilidades: é governanta da casa de Han Wegerif («pai Han», no Diário), um contabilista aposentado, viúvo, com quem manteve uma relação sentimental. Aí vivem o filho de Wegerif, Hans, de pouco mais de vinte anos, a cozinheira Käthe, e dois hóspedes, Bernard Meylink, estudante de bioquímica, e Maria Tuinzing, uma enfermeira que se tornará sua confidente e amiga. A Rua Gabriël Metsu contorna a esplanada verde do Rijksmuseum, onde estão as pinturas de Vermeer, de Pieter de Hooch, de Rembrandt..., e tem alguma coisa da atmosfera delicada e impávida que nessas imagens nos surpreende: «a copa das árvores, achei-as ao acordar... Os botões de tulipas, o vermelho e o branco, inclinados um para o outro... os ramos negros contrastando com o ar luminoso e, mais longe, o Rijksmuseum».

É impossível não aproximar o percurso que faz Etty Hillesum daquele vivido também por Simone Weil. São contemporâneas, ambas judias, debatendo-se por salvaguardar o sol interior num século de horas sombrias, ambas escritoras, ambas consumando até ao fim (ou mais para lá do fim) um destino de aniquilamento como se de uma incrível aventura espiritual se tratasse. A própria morte as aproxima, ocorrida no mesmo ano: 1943. Simone morre num hospício inglês, como se expirasse entre as vítimas, na frente mais exposta de um combate, e Etty num campo de concentração, para o qual partiu cantando. Mas há uma diferença na iconografia. Simone de Beauvoir conta que Weil se vestia como quem traja uma farda, cancelando, numa opção moral implacável, os sinais que a pudessem distinguir a ela, filha de uma Paris burguesa, da mais humilde operária fabril (coisa que, aliás, ela não sossegou enquanto não foi). As imagens de Etty são as de uma mulher bem diferente: elegante, feminina, com um toque de mundaneidade, e uma inteligência também física... Isso ilumina, creio, as duas trajectórias. Simone era, desde o princípio, ascética, disciplinada, rigorista: tinha a precisão de um diamante, mas quase não tinha corpo. Etty era imprecisa, sensual, dispersa: e é isso que ela vai trabalhar, a altíssimas temperaturas, até tudo se tornar corpo, para depois se tornar chama.

A conversão de Etty Hillesum, ou melhor, a sua «mudança de razão» (como o grego do Novo Testamento, com o termo metánoia, nos ensina a dizer), vai desenvolver-se em três encontros decisivos: o primeiro tem o nome de uma pessoa; o segundo tem o nome de um lugar; o terceiro não tem nome: é o encontro com o próprio Inominável.

O despertar espiritual

O projecto de um diário pessoal surge a Etty Hillesum como proposta terapêutica feita por Julius Spier (nomeado pela inicial do apelido, S.). A influência deste personagem, de «olhos cinzentos e gastos, espertos, incrivelmente espertos», é tão grande que os primeiros cadernos estão-lhe praticamente dedicados: ou com considerações a seu respeito, ou avaliando a reverberação fulgurante que provoca, ou, simplesmente, com transcrições minuciosas do seu pensamento. Julius Spier é um judeu de Frankfurt, refugiado no bairro judeu de Amesterdão, onde tem o seu pequeno consultório (a três ruas, um canal e uma ponte da casa dela). Chegou a ser director de um banco, foi depois editor, estudou canto até que chegou, passados vinte e cinco anos, à «psicoquirologia», uma diagnose psicológica que parte da leitura da morfologia da mão (que ele considera «o segundo rosto»).

Fez análise com Carl Jung, em Zurique, que lhe escreveu um texto elogioso a recomendar o seu método. A «psicoquirologia» tornou-se, desde aí, a sua principal ocupação. Etty conheceu-o por finais de Janeiro, um mês antes de começar o seu Diário, num sarau musical, onde o seu irmão Mischa tocava piano e Spier cantava. Etty conta que chegou a ele com um grande sentimento de solidão e insegurança: «quem me dera que houvesse alguém que me pegasse pela mão e se ocupasse de mim». Spier representou, na descoberta, na sabedoria e mesmo na desordem, a concretização desse desejo. Ele constituía uma mistura, perigosa e deslumbrante como podem essas misturas, de mestre espiritual, psicanalista, quiromante e xamã. No heterodoxo tratamento que propunha, que incluía sessões de luta física entre ele e os pacientes, as fronteiras muitas vezes esbatiam-se, e Etty não foi certamente a única a escrever: «sou abafada por essa personalidade e não consigo libertar-me».

Mas tudo somado, Spier representou indiscutivelmente para Etty Hillesum um verdadeiro iniciador na vida espiritual, o «obstetra da minha alma», para utilizar palavras suas. Spier chamava-lhe carinhosamente «a minha secretária russa». Ele ensinou-lhe «a pronunciar com naturalidade o nome de Deus». Iniciou-a na prática da oração. É ele quem lhe aconselha a leitura do Antigo e do Novo Testamento, ou de autores como Santo Agostinho e Tomás de Kempis. E, por outro lado, Etty conseguiu progressivamente trabalhar a sua autonomia, revisitar de forma distanciada e original o que recebia dele, defender o seu próprio espaço de deliberação (a dada altura, por exemplo, decide prosseguir o trabalho psicológico com Spier, mas recusa já a abordagem psicoquirológica, que não a convence).

É, de facto, a pensar nele que Etty escreverá: «eu sei que os mais importantes pioneiros do futuro serão esses homens que têm uma ampla dose de feminilidade - e que não deixam de ser homens verdadeiros.» Ao longo do Diário encontramos disseminados muitos ensinamentos de Julius Spier: o mais importante de todos, impresso não na letra mas na imensa transformação que Etty realiza, foi a fé inequívoca na possibilidade de vivermos uma vida plena e inteira. Tudo o resto é matéria convergente, são cintilâncias dessa verdade maior, como os exemplos que aqui se dão. A expressão «Palavra de Deus» não se restringe unicamente à Bíblia. É antes uma espécie de conhecimento original cuja expansão continua, uma inspiração, em sentido amplo, através da qual o Espírito Santo continua a sua revelação no interior dos corações.

«Ajuda-te que o céu te ajudará.»

É quando nos ajudamos a nós mesmos, cultivando uma sincera confiança em nós, que confiar em Deus se torna possível. É necessário trazer os outros dentro de si, espiritualmente: esta pode ser uma «memória orante», uma verdadeira oração. Para rezar é-nos requerida a entrega a um profundo recolhimento. No final de cada dia, é importante recolhermo-nos, uns dez minutos, a recordar o modo como o vivemos, e o que ele nos trouxe de bem e de mal. Um dia, e Etty conta-o a 25 de Setembro de 1941, ele ter-lhe-á dito: «Tenho a impressão de ser um "estado preparatório" para um grande amor teu.» Spier morre em Setembro do ano seguinte, em Amesterdão. Ela reentra no campo de Westerbork pouco depois de assistir à rápida cerimónia fúnebre.

O despertar espiritual de Etty liga-se ainda a outra amizade, a de Henny Tideman, uma cristã que ela conhece precisamente nos encontros com Spier. Etty lembra-se do comentário que este fazia a seu respeito: «tem a inteligência da alma». Com Tide, perceberá o alcance da oração, aprenderá da «sua voz radiosa e afirmativa» a dirigir-se também a Deus por palavras suas, numa abertura misteriosa e total, onde passa a caber, com a maior naturalidade, a alusão ao sofrimento, à beleza dos gerânios ou a um verso de Rilke.

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