"O povo tem andado de lá para cá e de cá para lá, correndo atrás da própria vida"
O missionário passionista Luiz Fernando Lisboa foi nomeado bispo de Pemba, capital de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, em 2013. Pertence à Congregação Paixão de Cristo que o levou para o país em 2001. Em outubro de 2017, iniciaram-se os ataques reclamados pelo Estado islâmico, tornando a província ainda mais pobre. Com mais de 200 mil deslocados e mil mortos. No ano passado foram atingidos pelo ciclone Kenneth, este ano pela pandemia de covid-19, num país com um sistema de saúde deficitário e a braços com a cólera. Situações que agravam a crise humana que vivem e que levam o bispo a gritar por socorro. Tem 64 anos e foi ordenado padre aos 27.
Tem denunciado os ataques em Cabo Delgado mas, desta vez, tornou pública uma carta, foi numa situação de desespero?
Sim. Desde o início dos ataques em Cabo Delgado, no início de outubro de 2017, que há uma certa lei do silêncio, tanto a nível interno como externo. Houve um certo desconhecimento do que se estava a passar e ficámos isolados. Esse grito de socorro surge para que olhem para a situação de Cabo Delgado, para que vejam o sofrimento do povo, para que tomem decisões e apresentem soluções para que esta situação acabe.
Qual é a realidade da população?
O povo da província de Cabo Delgado, como todo o norte do país, é muito pobre e vive com muito pouco. E, desde que se iniciaram os ataques, tem andado de lá para cá e de cá para lá, correndo atrás da vida. São centenas e centenas de mortes, milhares e milhares de deslocados. Perderam as casas e foram obrigados a deslocar-se das aldeias para proteger a sua própria vida. De início, foram para os centros dos distritos, depois, atacaram os distritos e as pessoas começaram a sair das cidades alvo de ataques, a vir para Pemba, capital da província.
Quantas pessoas estão deslocadas?
Temos mais de 200 mil deslocados da guerra. São os que saíram das aldeias e, os que não saíram, vivem escondidos no mato por causa do medo. Durante o dia, um membro da família vai ver como está a casa, mas todos dormem no mato por medo. E tudo isso foi agravado com o ciclone Kenneth, fez um ano em abril, que devastou grande parte dessa área. Juntando a essas duas coisas, o surto de cólera e, agora, a covid-19, estamos a viver uma crise humana grave.
Os ataques têm sido reivindicados pelo Estado Islâmico, mas parece ter dúvidas sobre quem está por trás dessa guerra, que o motivo sejam os recursos naturais da região.
Eles têm-se autoproclamado do Estado Islâmico e o próprio governo de Moçambique acaba de reconhecer essa situação. Pode ser um grupo radical islâmico, mas o que tenho dito é que no interior de Moçambique, em Cabo Delgado, nunca tivemos atritos entre as religiões. Os líderes religiosos muçulmanos não estão envolvidos, têm-se afastado desse grupo através de cartas, reuniões e encontros com outras entidades. É um grupo radical, que foge dos padrões do que propaga o islão verdadeiro.
Tem suspeitas de quem os financia?
Há alguém por trás que os sustenta, que dá dinheiro, porque muitos jovens foram para lá atraídos pelo dinheiro. Numa situação em que há muito desemprego, em que a juventude não tem muitas expectativas, não tem acesso a uma educação de qualidade, terminam a 7. ª classe (ensino primário e obrigatório) e não podem avançar nos estudos. Os jovens são presa fácil para quem oferece dinheiro.
Divulgou a carta no início de maio, quais foram as reações?
Tenho escrito várias cartas, a primeira resposta e a que teve maior repercussão foi a do Papa Francisco no domingo de Páscoa. Falou sobre Cabo Delgado e o facto de ter pronunciado "crise humana em Cabo Delgado" escancarou a nossa situação. Houve a partir dai um maior interesse da comunidade internacional, mas também interna. O governo agradeceu ao Papa.
Isso alterou a forma de agir das autoridades moçambicanas?
A partir desse momento não puderam continuar a ignorar o que se está a passar. Os jornalistas eram impedidos de trabalhar, e ainda são, porque não se pode mostrar a realidade. Temos sabido dos números e da situação pela imprensa alternativa e órgãos de comunicação fora do país, o que não é bom. Depois de o Papa falar sobre Cabo Delgado, o próprio governo, a própria polícia, começaram a informar a imprensa, nomeadamente sobre os 52 jovens mortos na aldeia de Xitaxi e a neutralização de 129 homens que promoviam a guerra. Enfim, o governo começou a dar números.
Mais de dois anos depois de terem iniciado os ataques.
Exatamente, no começo houve a lei do silêncio, uma certa proibição de acompanhar os casos, vários jornalistas foram presos. Temos um jornalista, Mbaruco, desaparecido desde 7 de abril, há mais de um mês. Ninguém diz se está vivo, em poder de quem está ou se está morto. A família e toda a sociedade, nomeadamente a organização de jornalistas [Misa Moçambique] já foram à procuradoria, à procura de uma resposta.
Qual é a justificação que tem para as limitações na obtenção de informação?
Não gostaria de fazer um juízo de valor, mas é uma maneira de ver as coisas, manter o silêncio pode ser uma estratégia. Mas esse silêncio custou muito, doeu a Cabo Delgado.
A população sente que está abandonada?
Algumas vezes usei essa palavra, disse que a população se sente abandonada, como se não pertencêssemos a Moçambique. Houve jovens que inclusive fizeram uma música sobre isso, outros manifestaram-se nas redes sociais. Pedem que olhem para eles, que façam alguma coisa, esse grito não é só meu, talvez eu seja quem reuniu o grito das organizações, das pessoas, principalmente do povo, que é quem mais sofre.
Tem receio de que lhe possa acontecer alguma coisa?
Tenho consciência que há riscos, não faltam indiretas, palavras, conselhos para ter cuidado, mas a Igreja não pode afastar da verdade, conto o que acontece aqui, não invento. Falo de algo que presencio, acompanho a situação, temos missionários em todos esses lugares, não posso deixar de falar. Se a Igreja silencia, não está a cumprir o seu papel, tem de falar a verdade. Tenho consciência dos riscos, mas não tenho medo porque tenho cumprido a minha missão.
A doença covid-19 está a agravar a crise humana de que fala?
Muito, estamos no segundo mês do estado de emergência, pede-se o isolamento social, mas vivemos uma situação paradoxal, 95 % das pessoas dependem dos pequenos trabalhos que fazem na rua, trabalham na rua para levar o pão para casa. Como é que podem ficar isoladas em casa? Não é possível. O Governo tem feito campanhas sobre cuidados de higiene, a Igreja tem colaborado, as pessoas estão a fazer máscaras, mas é muito pouco, o governo não apresentou algum subsídio que possa ajudar os mais pobres. Se houvesse um subsídio mínimo para ajudar os que são mais pobres, estes podiam ficar em casa, mas não se falou disso. Os pais não podem ficar em casa quando os filhos não têm nada para comer.
Muitas famílias viram os agregados familiares alargados devido aos ataques.
Exatamente, com os milhares de deslocados internos, cada família, que já tinha sete, dez membros, recebeu outra família, as casas estão cheias. O surto de cólera em alguns distritos deve-se à falta de condições mínimas de higiene. Em relação à covid, não sabemos a real situação, não temos mortes e temos pouco mais de 100 casos, mas fazem-se poucos testes. Esperamos que a propagação continue lenta a fim de que o sistema de saúde, que é muito fraco, possa dar conta dos casos que apareçam.
Teme que sejam mais os casos?
Os testes são em número reduzido, ficamos sem saber qual é a real situação. E Cabo Delgado é a província com mais casos.
Quantos habitantes tem a província?
Cabo Delgado tem quase 2,4 milhões de habitantes, tem uma área idêntica à de Portugal. As cidades maiores concentram muita gente, há muita aglomeração. Há muita gente a viver sem as condições mínimas de higiene para prevenirem esta nova doença.
É a região mais pobre de Moçambique?
Moçambique está entre os dez países mais pobres do mundo, Cabo Delgado e Niassa são as duas províncias do extremo norte e sempre foram consideradas as mais pobres. Cabo Delgado é muito rico em recursos naturais, temos o gás, o rubi e muitas outras coisas, mas tudo isso é recente e não se refletiu na situação da população. O povo é pobre e o pouco que tinha perdeu, e, pior, muitos perderam a própria vida.
Qual tem sido o papel das instituições internacionais?
Não temos muitos dados concretos, sabemos que foi discutido tanto na União Africana, como na União Europeia e nas Nações Unidas, além da oferta de ajuda de alguns países. Essa ajuda tem de ser concertada pelo governo moçambicano, mas nada disso está muito claro, nada é dito pelo governo, sabemos pela imprensa.
Acha que Portugal poderia ajudar mais?
Portugal podia ajudar mais, as Nações Unidas podiam ajudar mais, o secretário-geral da ONU [António Guterres] poderia intervir, mas, mais uma vez digo, a ajuda tem de depender do governo de Moçambique. As autoridades moçambicanas dizem que precisam de apoio externo e, de alguma forma, têm vindo alguns grupos, mas essa ajuda tem que ser concertada.
O que tem de ser feito imediatamente?
Gostaríamos que os atacantes fossem apanhados e respondessem perante a lei, que se encontre quem está a promover tudo isto. E avançaria com algo que não foi falado, ou foi muito pouco, que as vítimas sejam indemnizadas. Muitas pessoas perderam tudo o que tinham, muitas vidas foram ceifadas. Quem se responsabiliza por isso?
Quantas são as vítimas mortais?
Não temos o número exato, durante muito tempo, quando falavam em 200 eu dizia 500 e, ultimamente, ultrapassará os mil, mas são números jogados quase por adivinhação, ninguém tem esse número. Vamos contando as pessoas que morreram nas aldeias, mas não sabemos as mortes entre as forças de segurança, entre os atacantes.
Pertence aos missionários passionistas. Qual é o vosso papel em Moçambique?
Estamos aqui para servir o povo. Quem está a ser espoliado é o povo mais pobre, os que não têm voz, que não têm oportunidades. Temos olhado para os clamores deste povo e tentado ser um altifalante do que o povo gostaria de dizer, mas não fala, por medo ou falta de oportunidade. Estamos aqui para evangelizar, para dizer que Deus não nos abandona, que sofre com a dor da humanidade, que devem ter esperança.