O pescador que perdeu as graças do mar
De Jonas Carpignano a Chloé Zhao, há um certo cinema contemporâneo que tem vindo a confiar a sua verdade dramática a atores não-profissionais. Gente que diante da lente faz de si própria, apenas enquadrada por uma narrativa ficcional que permite ao espetador entrar num contexto específico; pode ser um bairro ou o "idioma" de um modo de vida, como o rodeo. No caso de Luzzu, entramos no domínio da pesca conduzidos pelo rosto estupendamente melancólico de Jesmark Scicluna, um pescador maltês que aqui dramatiza a sua condição a partir da realidade bem concreta dos homens do mar Mediterrâneo. Com as diretrizes europeias a limitar o tipo de peixe que pode ser pescado, mais a escassez provocada pela pesca de arrasto, figuras como Jesmark, que trabalham por sua conta mantendo a tradição de gerações anteriores, têm os dias contados.
Este cenário chamou a atenção de Alex Camilleri, realizador maltês-americano sediado em Nova Iorque, que soube identificar numa comunidade e nos seus tradicionais barcos de pesca - os luzzu - motivos perfeitos para a sua primeira longa-metragem. De resto, trata-se de uma produção independente, de língua nativa, que vem dar a Malta uma dignidade rara no grande ecrã, já que a relação deste país com o cinema não vai muito além dos blockbusters de Hollywood que usam as suas costas pitorescas para simular paisagens épicas.
Assim, com sensibilidade e pudor, Camilleri aproxima-se da expressão de Jesmark para captar o silêncio dos seus olhos, que parecem guardar uma experiência masculina ancestral. Olhos - como aqueles que ornamentam a proa dos barcos - agora indecisos entre o apelo do imenso azul e as responsabilidades terrenas. O seu drama passa pelo plano doméstico, com um filho bebé que tem necessidade de cuidados especiais, e pelo plano idílico, que implica a manutenção de um luzzu, o lindo barco colorido que lhe foi deixado pelo pai (e que faz parte de uma longa linhagem), prestes a ser sacrificado em nome do futuro do seu próprio filho...
Muito do que se vê das interações entre as personagens resultou de uma controlada improvisação. "Perderia o propósito se de repente pedisse aos não-atores para lerem as linhas de uma página. A ideia era manter a autenticidade deles", disse Camilleri em entrevista ao The Guardian. E, de facto, nada é forçado no retrato do desespero mudo deste homem que é levado progressivamente no encanto das alternativas modernas, desde o mercado negro a um fundo da União Europeia, que significa a entrega definitiva da sua licença de pesca. Essa corrosão espiritual, que dispensa conversas sérias sobre o assunto, é intercalada por momentos serenos entre os pescadores malteses, cujos rituais vertem uma linguagem única de gestos humanos.
Já na bagagem dorida do protagonista há toda uma prudência emocional. É muito comovente o modo como o corpo estoico de Jesmark absorve o determinismo à sua volta e o resume numa pequena história que conta ao bebé. Nesse monólogo breve - talvez o pouco que o realizador terá pedido ao seu não-ator para decorar - está refletida toda a desafetação e subtileza cultural de Luzzu.