O perturbante intimismo de Kantemir Balagov regressa ao LEFFEST

Kantemir Balagov, vencedor da edição de 2017 do LEFFEST, está de volta ao certame com um filme magnífico: "Violeta" faz um retrato íntimo da cidade de Leninegrado, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.
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Se é verdade que os festivais de cinema servem para descobrirmos novos cineastas, vale a pena lembrar que a edição de 2017 do Lisbon & Estoril Film Festival conteve uma grande revelação: o cineasta russo Kantemir Balagov (n. 1991) que com o seu admirável Tesnota/Closeness acabou por arrebatar o prémio de melhor filme. Pois bem, Balagov está de volta à competição do LEFFEST, agora com Violeta, distinguido este ano em Cannes, na secção "Un Certain Regard", com o prémio de melhor realizador (Espaço Nimas, hoje, 18h45).

Mais uma vez, importa começar por sublinhar o cuidado com que Balagov inscreve as suas narrativas em contextos históricos muito precisos. No caso de Tesnota, tudo se desencadeava a partir do rapto de um casal de jovens de uma comunidade judaica, em 1998, na cidade de Nalchik, República da Cabárdia-Balcária (onde o realizador nasceu). Violeta encena uma nova história de perturbante intimismo, tendo como pano de fundo Leninegrado, em 1945, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

Assim como no primeiro caso não estávamos perante uma história banalmente policial, também agora não se pode dizer que Violeta siga os códigos do tradicional filme de guerra. Em boa verdade, se encontramos aqui uma tão intensa sensação do sofrimento de toda uma cidade, isso resulta de uma atenção obsessiva às convulsões individuais.

A personagem central de Iya Sergueeva (interpretada pela notável Viktoria Miroschnichenko) é alguém que, por assim dizer, desafia as próprias matérias de que se faz o cinema. Porquê? Porque a guerra lhe deixou uma perturbação que, em determinados e imprevisíveis momentos, a faz perder a consciência do lugar onde está, assumindo uma pose de zombie que ninguém sabe como contrariar; ora, para "figurar" tal condição, Balagov utiliza a banda sonora do seu filme como uma espécie de som interior da própria Iya, como se aquilo que vemos fosse uma máscara de uma identidade à deriva no turbilhão da história.

Tal como Tesnota, Violeta é um objecto de paradoxal realismo. Assim, trabalhando Iya num enfermaria que acolhe soldados feridos na guerra, somos levados a descobrir uma realidade muito crua em que os sofrimentos físicos coexistem com as mais drásticas carências materiais. Ao mesmo tempo, Balagov explora um certo "barroquismo" das cores e ambientes que faz com que se instale a sensação de estarmos a assistir a memórias que já foram filtradas pela passagem metódica da história, das gerações, convertendo os sinais do medo em narrativa trágica.

Esquecemo-nos tantas vezes da grande do cinema russo, da sua riqueza e pluralidade interior. E talvez não seja abusivo considerar que as singularidades do trabalho de Balagov justificam alguma revisitação das memórias de alguns outros cineastas "romanescos", também empenhados em expor a intimidade da história colectiva, como Andrei Konchalovsky (n. 1937) ou Nikita Mikhalkov (n. 1945). Em qualquer caso, esperemos que este magnífico Violeta não tenha a mesma sorte de Tesnota, infelizmente nunca estreado nas salas portuguesas.

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