O período menstrual do Twitter
"O copo menstrual existe para o poderes beber mais facilmente." Este tuite da humorista Peperan (Ana Correia), de 5 de julho, foi o primeiro que vi sobre o assunto. Nas respostas, várias mulheres corroboravam: "É mesmo a quantidade certa para o shot, adoro"; "Eu bebo pingado no café"; "Odiava chupar o tampão bahhhh amen copo menstrual"; "Prefiro pegar no copo menstrual cheio de sangue, meter lá uma colher pequena, congelar no frigorífico durante duas horas e depois tomar como um popsicle"; "Costumo despejar o copo menstrual dentro da batedeira e adicionar umas frutas e fazer assim uma espécie de milkshake ... ainda estranho um pouco o sabor às vezes."
Gostei do sarcasmo e da provocação e retuitei. Pouco depois, vi uma laboriosa cadeia de tuites, assinada por "ocupada a decorar texto", na qual a autora assumia uma postura pedagógica, pretendendo explicar a origem da prática - combater a anemia -, assim como várias "receitas" para o consumo. Entusiasmada com aquilo que me surgia com uma desconstrução subversiva das ideias tradicionais de "nojo", silenciamento e vergonha associadas ao período, decidi entrar na brincadeira, retuitando a cadeia e comentando: "Muito importante que finalmente se assuma isto. Nenhuma mulher deve ter vergonha de beber o sangue menstrual."
Rapidamente, dezenas de contas se juntaram à paródia. E se tinha começado entre as jovens ativistas feministas do Twitter, vários homens se lhe juntaram, assegurando "saber do segredo" pelas irmãs, namoradas e mulheres, chegando a afiançar que também consumiam. Depressa, por desfastio, os usos atribuídos ultrapassaram a ingestão e passaram para os tópicos: houve quem afirmasse que juntava umas gotas de sangue menstrual ao banho de imersão por fazer bem à pele (pegando na ideia, afirmei que era ótimo em pachos, para combater o envelhecimento), e mesmo quem decidisse dar-se ao trabalho de inventar toda uma resenha histórica da prática desde a pré-história.
A inventividade e sentido de humor de algumas destas produções fizeram-me soltar umas boas gargalhadas, maravilhada por tanta gente, incluindo tantos homens, aderir espontânea e solidariamente ao afrontar de preconceitos e tabus sexistas.
Por acaso ou deliberação, a RTPplay juntou-se ao movimento, anunciando no Twitter o documentário O meu sangue, de Tota Alves. Neste, várias pessoas - incluindo um homem transexual - falam da menstruação. Narram-se as experiências pessoais, algumas delas traumáticas, da primeira menstruação, e lembram-se uma série de crendices que a maioria das mulheres, mesmo as mais jovens, conhecem: não se poder lavar o cabelo ou até tomar banho quando se está com o período (alegadamente porque se podia "ficar maluca" ou mesmo morrer), não poder cozinhar ou fazer certas tarefas.
Central na experiência de ser mulher, o período é tradicionalmente, na generalidade das culturas, associado a impureza; há locais onde ainda hoje as raparigas e mulheres menstruadas são obrigadas a sair de casa, em opróbrio temporário, e em alguns casos, como entre os judeus ortodoxos, devem submeter-se a um banho de purificação pós-menstruação.
Ao ver o documentário de Tota Alves, que recomendo, lembrei-me de coisas que esquecera: como aos 15 ou 16 anos ouvi uma colega de liceu afiançar que se um homem tivesse sexo com uma mulher com um período podia morrer e de como sofri, como tantas outras adolescentes, com dores horríveis durante a menstruação e com a hipótese de que se pudesse perceber que estava "naqueles dias do mês". O horror maior era ficarmos "sujas", ou seja, que alguma mancha suspeita se visse.
Nunca mais tinha pensado nisso; há coisas - e aqui refiro-me não ao período, claro, mas a toda a opressão que o rodeia - que simplesmente passam a fazer parte das nossas vidas, como se fossem uma inevitabilidade, e que temos de fazer um esforço para ver, consciencializar e desconstruir. Daí que para além de constituir um exercício de ironia notável - adorava saber quem começou, para lhe dar os parabéns - esta experiência twiteriana tenha permitido perceber que a vergonha e confusão que eu e as mulheres da minha idade sentimos há mais de 40 anos ainda são uma questão; que o assunto ainda incomoda.
Houve, é certo, quem se assustasse, a dada altura, com o êxito da iniciativa, e com facto de tantos estarem confusos e a levar a coisa à letra; falou-se até de riscos para a saúde (o que me parece francamente sem sentido). Mas a subversão maior era mesmo essa: provar que a aliança entre o tradicional "nojo" pela menstruação e mitos a ela associados e o ódio às feministas em geral (e a algumas, como esta vossa criada, em particular) levaria muitos a acreditar. De facto, encontrei posts no Facebook em que era insultada de cima a baixo (nada de novo, na verdade) por defender a prática, vi a ilustradora e colunista Lucy Pepper a denunciar horrorizada, na sua língua natal (é britânica) aquilo que acreditava ser uma prática verdadeira, indicando os meus tuites como o local onde se dera conta dela (depois percebeu que tinha sido "levada" e deu os parabéns pela piada), e uma amiga contou-me que o seu filho mais novo, que me conhece desde os três anos e tem agora 17, foi perplexo perguntar-lhe se eu bebia mesmo o período.
Estou certa de que por muitos e bons anos haverá quem acredite que bebo sangue menstrual e apelo a que todas as mulheres o façam. Paciência; será só mais uma coisa falsa que circula, e esta, além de ter sido por uma boa causa, até tem piada. Espero que no meio de tanta palermice haja quem, como eu, tenha refletido sobre a matéria e percebido que há muito a fazer para que a menstruação deixe de ser vivida - e vista - como um tabu, causando infelicidade e exclusão.
E, já agora, como defensora irredutível da liberdade de cada um fazer de si o que lhe aprouver, não quero deixar de certificar que não vejo problema algum em que quem queira beber o seu período (ou o de outra pessoa) o faça. Bom proveito.