"O país que me fascina mesmo é Portugal e não estou a ser romântica"

Brunch com a presidente da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses, Joana Gaspar.
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Há uns meses recebi um mail da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses a convidar-me para um pequeno-almoço de trabalho. Como o dia agendado coincidia com uma ausência de Lisboa, desafiei Joana Gaspar, a presidente da ASDP, para uma conversa posterior. Queria saber de que se queixam os nossos diplomatas, de cuja importância para o país sou testemunha - afinal tenho lidado com muitos ao longo de 30 anos no DN e recordo-me bem como alguns foram de grande ajuda em países como o Paquistão, onde estive após o 11 de Setembro, quando a América bombardeava o Afeganistão, e também da falta que senti de uma embaixada a funcionar com gente em Bagdad quando fiz reportagem no Iraque em 2003, nos tempos finais do regime de Saddam Hussein.

Finalmente, avançámos agora com a entrevista, que se transformou em Brunch com, juntando o percurso da própria Joana à associação que lidera desde outubro de 2021. Por iniciativa da diplomata, bebemos café e comemos scones na esplanada da cafetaria que há no pátio do Palácio da Cova da Moura, que abriga a Direção-Geral dos Assuntos Europeus. "Venho aqui por vezes, apesar de trabalhar nas Necessidades", diz, referindo-se ao palácio próximo que também serve de casa ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Sei que, tal como eu, Joana estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), mas pensava não a conhecer até me recordar de uma palestra organizada pelo Instituto Diplomático há uns anos, quando o Brexit estava na ordem do dia. Fui entrevistar Jonathan Powell, diplomata britânico que foi chefe de gabinete do primeiro-ministro Tony Blair, e na altura conversei com a então coordenadora do Centro de Estudos e Análise Estratégica do Instituto Diplomático, cargo que assume de novo.

E assim, com o à vontade por estar a falar com uma colega do ISCSP, questiono o que levou uma lisboeta nascida em 1975 a ir estudar Relações Internacionais no início dos Anos 90. "Fui por um motivo muito idealista, que acho que é aquele que deve comandar as nossas escolhas quando temos 17 ou 18 anos. Tinha tido contactos, durante as férias, com jovens de outros países e senti-me no meu elemento. Achei que ao estudar Relações Internacionais poderia dar o meu contributo para tornar o mundo melhor. Não vou dizer a paz no mundo, porque depois parecia uma miss, mas é isso", responde, entre risos.

Pergunto-lhe se, como eu, escolheu o ISCSP sem sequer saber onde era o Palácio Burnay, que fica na Junqueira. "Era a única universidade que tinha o curso de Relações Internacionais, tirando a Universidade do Minho, e eu morava em Lisboa. Não conhecia o palácio, nem sabia muito do curso. Não havia internet para pesquisar." [Risos]

Falamos sobre alguns professores que ambos conhecemos, pois os cursos de Relações Internacionais e de Comunicação Social tinham várias cadeiras em comum. O nome de Adriano Moreira, antigo ministro das Colónias e também antigo líder do CDS, vem à conversa, até porque era um prestigiado especialista em Política Internacional, mas Joana confessa que, de início, um ex-ministro de Salazar na faculdade (e não era o único) até a fez desconfiar um pouco da escolha... "Porque a minha família é uma família de esquerda, que viveu intensamente o 25 de Abril. E gosto de dizer que sou produto do ensino público desde a Primária até a Universidade."

No 4.º e último ano da licenciatura, surge a hipótese de, através do Programa Erasmus, Joana ir para Estrasburgo. Foram nove meses em França que tiveram influência na forma de encarar o mundo. "Foi interessante ver a diferença da estrutura do curso e da maneira de ensinar. Por exemplo, eu nunca tinha dado História do século XX e foi em França que aprendi sobre a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, porque nunca tinha chegado a essa parte da História durante o ensino em Portugal e tive História até ao 12º ano."

Fico a saber, por entre elogios partilhados aos scones com manteiga, que há dois anos, e de novo no ISCSP (agora no campus da Ajuda), Joana fez o mestrado, com a dissertação O diplomata no século XXI. Continuidades e mudanças na prática diplomática face às transformações tecnológicas - o caso português".

"Voltei a estudar porque achei que precisava de uma reciclagem. O mestrado foi uma decisão que eu tomei porque ao fim de mais de 20 anos como diplomata - um trabalho polivalente em que nós fazemos aquilo que é preciso fazer e, se é preciso ir a uma reunião e fazer um relatório, fazemos, se é preciso emitir vistos, emitimos, se é preciso ir falar a uma universidade sobre a política externa, falamos - acabamos por perder um pouco a evolução do enquadramento teórico, deixamos de ter tempo para estudar, porque estamos sempre a apagar fogos. Somos poucos na carreira diplomática portuguesa e estamos sempre um bocadinho overstretched", explica.

Esta palavra em inglês, traduzível por "demasiado esticados", é um bom mote para uma primeira abordagem ao tema do trabalho dos diplomatas, com a dirigente sindical a garantir não conhecer "nenhum diplomata português que esteja em posto ou na sede e que não esteja completamente esticado em termos do seu tempo e do seu esforço".

"Aquilo que senti, de repente, foi que evoluiu imenso a teoria da diplomacia. Fiz uma tese com um estudo de caso sobre a diplomacia portuguesa, sobretudo a grande transição que houve com a revolução digital e a forma como a diplomacia mudou através deste instrumento de trabalho. Como era e como é e a forma como o Ministério dos Negócios Estrangeiros português e os diplomatas portugueses se têm adaptado a esse novo instrumento de trabalho."

Falo dos riscos que por vezes os diplomatas correm ao usarem as redes sociais e cito o caso do antigo embaixador francês em Washington, Gérard Araud, que comentou jocosamente num tweet a eleição, em 2016, de Donald Trump para a Presidência. Joana conhece a polémica - até porque Araud escreveu um livro de memórias -, mas afirma que, em regra, um diplomata sabe autocontrolar-se, "pois está em representação do Estado Português e aquilo que diz afeta a sua própria credibilidade pessoal e a credibilidade do país". Sublinha que "as redes sociais são um elemento essencial da diplomacia pública, atualmente, e não há nenhum diplomata que possa estar ausente das redes sociais, porque isso faz parte do seu trabalho."

Paris foi em 2002 o primeiro posto de Joana no estrangeiro, cinco anos depois de ter sido aprovada no concurso de ingresso na carreira diplomática. E o trabalho na capital francesa deixou-lhe belas memórias: "Era embaixador António Monteiro e o número 2 era o atualmente embaixador em Madrid, João Mira Gomes; o número 3 era o também atual embaixador Gilberto Jerónimo, que está no Conselho da Europa. Um equipa fantástica, aprendi muitíssimo. Aprendi que o diplomata mais novo dentro de uma embaixada é aquele que faz tudo, todas as coisas que os outros diplomatas mais velhos já passaram por isso e já não vão querer fazer. Isso significa ser o piquete da cifra, no tempo em que não havia e-mails no telemóvel e era preciso ir ver se havia algum telegrama urgente durante o fim de semana. Tinha de fazer tudo o que era protocolo e, em Paris, havia muitas visitas de ministros e, portanto, tinha de as organizar e ir ao aeroporto receber as pessoas. E também tinha alguns pelouros mais de substância, sobretudo o acompanhamento da política externa francesa no Médio Oriente, que me dava um imenso prazer."

No último ano em Paris, 2005, foi mãe pela primeira vez. Hoje com dois filhos adolescentes, Joana admite que conciliar carreira com vida familiar é um desafio, mas não só para os diplomatas. "Vemos isso pela taxa de divórcios, que é 50% dos casamentos e não são 50% diplomatas, certo? Portanto, a vida familiar e os casamentos são uma coisa difícil, na sociedade moderna, de se manter. Nas vidas dos diplomatas há, efetivamente, uma dificuldade acrescida, porque quando um dos membros da família é diplomata, o outro, para acompanhar, à partida, terá de abdicar da sua vida profissional, mesmo que hoje em dia já não seja tanto assim porque temos o teletrabalho e uma internacionalização muito grande das profissões."

De regresso a Portugal após três anos em Paris, Joana foi ocupando várias funções, com destaque para chefe da Divisão de Proteção Consular, na Direção-Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas, e adjunta do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros Luís Amado. Em 2014, ano em que publica Manual de Prática Consular, é colocada em Londres, onde como cônsul-geral assiste a um grande crescimento da comunidade portuguesa e à saída do Reino Unido da UE, o célebre Brexit.

É quando, além dos afazeres profissionais, tem de lidar com a educação de duas crianças. E agora fala a mãe, mas também a dirigente sindical: "Ao contrário da maioria das carreiras diplomáticas de outros países, e ao contrário até das empresas que enviam famílias de funcionários expatriados para outros países, o Ministério dos Negócios Estrangeiros não paga as despesas de educação dos dependentes dos diplomatas no estrangeiro. Isto é uma luta que a ASDP já tem há anos, sobretudo porque a Constituição diz que a Educação é tendencialmente gratuita. Se o diplomata, que é um funcionário público, está ao serviço do Estado no estrangeiro, deveria ter acesso a essa Educação tendencialmente gratuita para os seus dependentes".

Comento que numa viagem a Tóquio conversei com um diplomata que me disse só poder concorrer àquela embaixada por não ter filhos. Joana diz perceber porquê, dado o elevado custo de vida no Japão. "Isso significa que existe, neste momento, uma discriminação gritante entre os diplomatas que têm filhos e os que não têm. Vou dar-lhe o exemplo de Nova Iorque, da nossa embaixada junto das Nações Unidas, pois há pessoas que não se candidatam porque não têm condições para suportar o custo de vida, não podem pagar as propinas da escola. Em Nova Iorque, neste momento, só estão colocados colegas sem filhos. E é mau para ambos os lados. É mau para os diplomatas que acabam por não ter a liberdade para se candidatar aos postos que mais desejariam e, por outro lado, é mau para o Estado português porque está a desperdiçar talento."

Outro problema é a Saúde, acrescenta: "Só existe seguro de saúde para os países fora da União Europeia e está ligado à pertença à ADSE. Portanto, só se pode ter o seguro de saúde se formos associados da ADSE e a contrarreembolso. Recentemente, nos Estados Unidos, houve um colega que caiu e partiu um braço e teve de adiantar todo o custo, que não foi pequeno, do seu bolso ao hospital, para esperar cinco ou seis meses que fosse reembolsado. Ora, neste caso, o colega tinha a outra mão para assinar o cheque, mas imagine uma pessoa num qualquer país estendida numa maca porque foi visitar um projeto das Nações Unidas e apanhou com uma bomba e está inconsciente - como é que assina o cheque para fazer o pagamento? Até hoje tudo se tem resolvido", diz a sindicalista.

Sendo igual a um sindicato, a ASDP não está impedida de um dia convocar greve. "Nós nunca sabemos o dia de amanhã. Os diplomatas franceses, durante o verão, fizeram uma greve de alguns dias motivada pela decisão do presidente Macron de acabar com a carreira diplomática francesa. É que, neste momento, um embaixador de França tanto pode ser oriundo de 30 anos de carreira diplomática, como ser da carreira autárquica e ter sido presidente da câmara de uma cidade do interior. Obviamente que os diplomatas franceses acham que não é bem a mesma coisa", afirma Joana.

Sobre alguns países terem tradição de colocar em Lisboa embaixadores políticos, como é o caso dos Estados Unidos, ou até de Portugal ocasionalmente fazer essa opção para representar o país na UNESCO ou na OCDE, Joana diz não concordar: "Poderá haver circunstâncias excecionais que o justifiquem, mas pessoalmente não concordo com a nomeação de embaixadores políticos."

A conversa está quase a terminar. Joana, depois das experiências em Paris e Londres, diz não ter uma preferência por uma capital quando voltar a ser colocada fora. "Acho que os melhores sítios são aqueles onde conseguimos fazer uma diferença. E tanto pode ser interessantíssimo estar num país onde Portugal já é conhecido e faz a diferença, como num sítio onde Portugal seja muito pouco conhecido".

Insisto se algum país a fascina, e admite ter gostado muito de viver no Reino Unido, mas realça: "O país que me fascina é mesmo Portugal e não estou a ser romântica. Se não fosse este meu amor pelo país, que é aquilo que permite, a mim e a todos os outros diplomatas, suportarmos as condições muito más em que acabamos por exercer a nossa profissão, e de pouco reconhecimento, tanto financeiro como em termos de mérito."

Joana, e agora o tom é mesmo de líder sindical, recorda que um diplomata começa a carreira com 1400 euros, "um salário muitíssimo baixo de início da função pública". "É um salário baixíssimo para uma pessoa que teve todo um percurso académico exigente e que passou por meses de um concurso de seleção também extremamente exigente. Para ter uma noção, existem 2000 a 3000 candidatos à carreira diplomática, mas apenas 25 vagas."

Sobre a tal qualidade da diplomacia portuguesa que explica, a par do mérito pessoal, a eleição internacional de figuras como António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas, Joana diz não ter a mínima dúvida de que essa qualidade existe, mas, de novo enfática no papel de presidente da ASDP, acrescenta: "O que acho que não tem de existir é a dificuldade em manter a qualidade da nossa vida. Nós continuávamos a ter boa qualidade se nos dessem melhores condições de vida. Por exemplo, o abono da habitação, que é aquilo que recebemos para alugar uma casa quando vamos para o estrangeiro, não é atualizado desde 2003."

A conversa chega ao fim e despeço-me de Joana, que volta às Necessidades. Mesmo na hora da despedida, confessa que gostava de ver um dos filhos seguir a carreira e aconselha os jovens que sonham ser diplomatas a tentarem. E dá o seu exemplo: "Todos os dias eu acordo com vontade de trabalhar. Já gostei mais de algumas coisas que fiz do que de outras, mas a honra de representar Portugal e de ajudar a levar o nome de Portugal mais além é de facto uma motivação."

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