"O obstáculo para integrar investigadores não é financeiro. É uma opção política"
Gonçalo Leite Velho, formado em Arqueologia e com escavações em Stonehenge no currículo, é presidente do SNESup - Sindicato Nacional do Ensino Superior e professor no Instituto Politécnico de Tomar. Está neste momento a terminar o seu segundo doutoramento, desta vez na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, com uma tese acerca das alterações que, do ponto de vista da economia política, tiveram lugar no ensino superior ao longo das últimas décadas.
Consegue apontar os períodos decisivos [nas alterações na política para o ensino superior]?
Claramente. Primeiro em 2003 com a alteração da lei das propinas. Nos gráficos há uma clara subida do suporte dos custos por parte dos estudantes e das famílias. Começam com números muito baixos, nos 2 ou 3%, e agora 32% da despesa geral com o Ensino Superior é suportada pelos estudantes e pelas famílias. É o valor mais elevado de toda a Europa. Em 2007, a alteração do regime jurídico das instituições de Ensino Superior e o reforço do poder concentrado nos reitores, que veio criar uma série de desequilíbrios nos mecanismos checks and balances, é acompanhada com a precarização do ponto de vista das relações laborais, que se acentua de 2007 para a frente mas sobretudo a partir de 2011. É quando há uma quebra muito acentuada do financiamento do Ensino Superior por via da intervenção do período de emergência financeira, da troika. De 2010 para 2011 a quebra é de 22 ou 24% do financiamento.Até ao final do período de emergência financeira, essa quebra ultrapassa os 30% do financiamento público. Creio que não terá havido outro setor no Estado que tenha tido uma quebra tão grande do ponto de vista do seu financiamento.
O que é que isto significa no ensino superior que temos?
Há uma desvalorização daquilo que é a profissionalização do conhecimento, seja pela investigação seja pela docência. Isso tem repercussões em termos institucionais. Nós já verificámos que os nossos jovens não querem ser professores do básico e do secundário, porque já se exauriu completamente essa profissão. Agora corremos o risco de vir a exaurir também a de docente do ensino superior, que era vista como uma torre de marfim, bem como a de investigador. Está longe de ser assim. A questão é: se ninguém se quiser dedicar a sério ao conhecimento, qual é que é o futuro deste país? Estamos muito mais perto de ser reprodutores de conhecimento - ou seja, importamos conhecimento de outros países, fazemos uma inovação que é gradual, muito ligeira - e não produtores de conhecimento, capazes de criar as grandes inovações que vão marcar as próximas eras.
O impacto da saída de cérebros é grande?
Houve um impacto muito grande do ponto de vista do brain drain. Aquilo que aconteceu agora nestes concursos [Estímulo ao Emprego Científico da FCT] é bastante evidente em relação à situação do Ensino Superior. Se voltarmos à questão das datas, um outro momento é o das transformações do estatuto da carreira do docente em 2009. Aquilo que vemos é que por volta de 2007/2009, em vez de se apostar numa revisão da carreira científica, que foi feita em 1999, e ao contrário daquilo que acontece nas carreiras docentes do politécnico e no universitário, que foram revistas em 2009 para dar dinamismo e para adequá-las aos novos tempos, a carreira de investigação cientifica é deixada para trás, e aposta-se numa série de programas com contratos de seis anos, que são programas que vão sendo renovados. A variação destes números ajuda-nos a perceber não só a pressão, do ponto de vista dos investigadores doutorados, como a incapacidade de profissionalizar e enquadrar nas carreiras estas pessoas. O programa Ciência em 2007 procurou no quadro de quatro anos dar contrato, ainda que a termo, a mil pessoas. O Investigador FCT foram 800 pessoas. E repare-se: muitos deste rodaram de um para o outro. Criou-se maior pressão. E agora no programa Estímulo ao Emprego Científico só tínhamos 500 vagas.
Sendo que no ano passado não houve concursos.
Não houve. Nós temos um aumento do número de doutorados, que se formam. Iam entrando 250 por ano e permanecendo um corpo de cerca de 2500 investigadores em pós-doc. Acudir àqueles 800 que eu tinha referido há pouco, mais estes 2500 para converter em contratos de trabalho sem nenhuma lógica de carreira é um problema. E vemos que está a atingir sobretudo os com mais maturidade, os mais seniores.
O que é que pode ser capaz de absorver estes 3600 investigadores que ficaram de fora do último concurso da FCT?
Não é um problema financeiro. Do ponto de vista financeiro, o custo com os 800 investigadores FCT era de 36 milhões de euros. Depois tínhamos o custo com os investigadores em pós-doc e a reformulação que foi feita em relação ao Orçamento de Estado [OE] deste governo. Nós tivemos uma capacitação extra, para além deste dinheiro que já estava no OE, quer em 2017 quer em 2018, houve reforços orçamentais: 80 milhões ao todo, que capacitavam os cerca de 60 milhões que já estavam. Agora em 2019 prevê-se um reforço ainda maior, de mais 70 milhões de euros. Estamos a falar de um reforço que está a atingir 150 milhões de euros. Sendo que para trás, como não foram abertos os concursos, o dinheiro não foi gasto. Há aqui um bolo financeiro que permite enquadrar estas pessoas em termos de OE. A única questão era conseguir que estes vínculos fossem de carreira e não fossem estes contratos de seis em seis anos. O obstáculo não é nenhum problema financeiro, não vamos à falência por causa disso, é apenas uma opção política sobre que tipo de vínculo queremos oferecer aos nossos investigadores. A questão é que, desde 2007, em vez de se apostar numa carreira de investigação científica, apostou-se em contratos de seis em seis anos em que o investigador ao final desses anos tinha sempre de provar qualquer coisa.
Houve nomes de peso que ficaram de fora, como o de Maria Manuel Mota e Irene Flunser Pimentel.
Neste último concurso nós tivemos investigadores que estiveram os últimos 20 anos a provar a sua capacidade, ganharam prémios, nacionais e internacionais, porque para além dos prémios Pessoa, que causaram notícia, temos pessoas que ganharam bolsas do ERC [European Research Council]. Ainda há dois dias um investigador de topo contactava-me porque estava à beira de ficar no desemprego em Portugal, e a sua opção era claramente emigrar. Portanto, estas pessoas que têm capacidade de conseguir financiamento nacional e internacional são aquelas que neste momento mais prejudicadas são nestes concursos, porque o número de vagas foi extremamente limitado e portanto o sistema não vai dar vazão aquilo que é uma prossecução de carreira.
O que a FCT diz é que esse número de investigadores seniores é mais reduzido e portanto as vagas também o são.
Vamos imaginar que temos cerca de 100, 120 que se candidatam ao concurso de investigador principal e há vagas para 60. A maior parte dos outros 40 tem currículo suficiente para chegar lá. A partir do momento em que nós os retiramos, o nosso investimento naquelas pessoas está a ser desperdiçado, porque elas vão encontrar emprego noutros sítios. Ou seja, não é que a bitola fosse ficar tão baixa que estivéssemos a enquadrar um investigador de qualquer tipo. Não, a questão é que nós estamos a enquadrar investigadores que são muito bons. Mas estamos a apostar mais em inícios de carreira e doutorados, e a formar cada vez mais doutorados, aumentando cada vez mais a pressão do lado das pessoas e cada vez menos a apostar do ponto de vista da questão das carreiras. Se nós perdermos as pessoas que fizeram um percurso, como é que vamos estar a formar? Não estamos a fazer escola. No fundo, é tirar fornadas que se vão desperdiçando. É um investimento de milhões de euros que nos arriscamos a perder.
Que leitura faz dessa opção política que está por detrás desses contratos periódicos em detrimento de uma carreira?
Acho que temos sentido aqui uma clivagem entre uma determinação politica de terceira via, seguida pelo ministro Manuel Heitor, e aqueles que sofrem as consequências das determinações politicas de terceira via. Quando o ministro Manuel Heitor afirmou publicamente que ia flexibilizar o emprego científico, estava em completa contradição tanto com o programa de governo como com os milhares de investigadores. Quando devíamos estar a apostar em sedimentar as carreiras e conseguir de facto enquadrar este corpo enorme de pessoas, investigadores de mérito, a estratégia foi apostar em doutorandos e numa massificação dos juniores com todos os problemas que conhecemos. Porque a aplicação da norma transitória também não correu bem. É um problema que demonstra uma indefinição e sobretudo um impasse do ponto de vista político entre estas politicas de terceira via, que atingiram o seu limite, uma lógica de emprego científico flexível, face àquilo que o sistema tem cada vez mais presente: essa lógica não faz sentido. Não é a flexibilização que traz a produção cientifica.
Mas uma vez que já não existem as bolsas de pós-doutoramento o programa de Estímulo ao Emprego Científico é a forma de absorver estes doutorados?
Temos aqui um problema enorme. É que também não vamos conseguir atingir os recém-doutorados. Estes investigadores juniores não são os recém-doutorados. Já são aqueles que têm pelo menos três anos de percurso e que estão enquadrados na norma transitória. Como é que vamos pôr a competir um recém-doutorado com uma pessoa que tem três anos de percurso pós-doutoramento? Os recém-doutorados com este governo têm um problema: não há nenhum concurso que lhes seja dirigido.
Estamos a falar de pessoas que, se tiverem feito o doutoramento com bolsa da FCT, estiveram em regime de exclusividade, e portanto não estiveram em relação o mercado de trabalho. É comum que terminem o doutoramento e não os esperem nem trabalho nem uma carreira de investigação?
Do ponto de vista da economia portuguesa temos debilidades que são conhecidas. Portugal tem percentagens muito baixas de emprego para trabalhadores que estão quer em setores de indústria de alta e média tecnologia, quer em setores de conhecimento avançado. Isto é uma deficiência nossa face a toda a Europa. Quando nós olhamos para a República Checa, percebemos as suas taxas de crescimento graças ao emprego que têm nestes setores. Quando olhamos até para países como a Turquia vemos pressões enorme de crescimento nestas áreas, porque têm a ver com aquilo que é o crescimento da economia turca. E em Portugal não. Onde temos estado a crescer é no turismo. Esse é o tipo de emprego que estamos a criar, que está desajustado do ponto de vista das formações. Nos acreditámos que, formando estas pessoas, a economia podia ir atrás e elas próprias iam criar o seu lugar. A nossa economia mantém vários constrangimentos, mas note-se que do ponto de vista da despesa pública, a nossa despesa pública com Ciência e Ensino Superior é das mais baixas quer da OCDE quer da Europa.
Como vai o processo de contratação de investigadores e docentes que tem o objetivo de contar 5000 até 2019?
A maior parte dos agentes é bastante cética em relação a esse objetivo dos 5000. Acho que será muito difícil alcançá-lo, mas sobretudo: qual é a consequência destes 5000? Neste momento verificamos que mais de 90% dos contratos que foram feitos são precários, contratos de 6 ou 3 anos. Neste momento já estão pensados cerca de 2700 contratos, 1700 na norma transitória, 500 deste concurso agora, mais 500 do institucional.
O Programa de regularização extraordinária de vínculos laborais precários (PREVPAP) não está a cumprir os seus objetivos?
Nesta legislatura e com este governo não houve nenhuma regularização da precariedade no ensino superior. Nós somos um sindicato que negoceia, apesar de o ministro se recusar neste momento a sentar-se connosco [a situação mudou depois já depois desta entrevista ser feita, e as duas partes reuniram]. Mas vou dar um ponto de apoio ao ministro Manuel Heitor quando ele diz que há forças muito conservadoras na Academia. Mas ele não soube fazer-lhes frente. Temos um falhanço completo do PREVPAP no ensino superior e ciência. Temos taxas de 6% de regularização de docentes. Tudo isto indicia um sistema que necessita de reformas profundas, que permitam um rejuvenescimento e uma abertura à sociedade que não é aquilo que está a acontecer. Sendo que a abertura à sociedade não é de certeza a contratação de docentes convidados que vão - desculpe a expressão, mas é para que as pessoas percebam - dar uma perninha à universidade. [Isso] Não é abrir a universidade à sociedade.
Uma das críticas que o reitor da Universidade de Lisboa (UL) António Cruz Serra fez na última aula do Presidente da República, na Faculdade de Direito, tinha que ver com a contratação: "Por imposição legal, as universidades têm agora de abrir concursos para pessoas determinadas adaptando no edital a descrição do lugar posto a concurso ao perfil do candidato pré-escolhido".
Acho que foi bastante deselegante entre colegas que o reitor tenha escolhido a última lição do Presidente da República para fazer uma série de críticas ao governo. Certamente teria outro momento. Sendo que no conjunto essas críticas também não são acolhidas por colegas, mesmo dentro da Universidade de Lisboa. Sobre a declaração do reitor da UL que se devia contratar docentes e não investigadores, da norma transitória só 6% dos contratos foram para professores e foram na UL. Os outros colegas não seguiram aquela indicação. Não consideravam como a melhor, e depois na UL acontece esta coisa incrível que é: o Instituto Superior Técnico (IST-UL) tem uma série de associações privadas sem fins lucrativos para onde se canaliza o financiamento público e por onde se contrataram cerca de 100 investigadores e bolseiros. O Tribunal de Contas avisa desde 2004 o IST que isto está errado e levanta várias questões do ponto de vista do escrutínio das contas públicas.
Esta é uma classe relativamente discreta.
Sim. Como é conhecido, nós docentes do ensino superior somos pessoas que estão concentradas na investigação. A última coisa que um professor do ensino superior quer é distrair-se, divergir da sua investigação, da sua preparação das aulas. É uma profissão por vocação. Isso obviamente traz-nos problemas daquela imagem habitual com as concentrações, etc. Já as fizemos no passado. Quando é necessário saímos à rua, mas temos preferência por alguma descrição que é característica da classe e que acaba por prejudicar-nos bastante.
Ainda há um desconhecimento grande face à classe por parte da população em geral?
Ainda. E há uma imagem de pessoas fechadas em si mesmas e nas instituições, que vivem afastadas do mundo, que não corresponde à realidade. Nós vemos cada vez mais que os docentes do ensino superior intervêm socialmente, quer do ponto de vista da política como em varias associações cívicas, e em termos económicos. Se há um fator de explicação para o crescimento das exportações portuguesas tem a ver exatamente com o grau de inovação que soubemos introduzir em varias áreas. Nos não tínhamos conseguido trazer as novas empresas da área das tecnologias da informação senão tivéssemos quadros qualificados. Em termos de progressões, a proposta do governo para os docentes de ensino superior é muito pior do que para o básico e secundário.
Ouvimos falar menos deles quanto ao congelamento de carreiras, por exemplo?
Sim. Neste momento de 13000 pessoas tinham passado cerca de 360. E a verdade é que existe um grande incómodo, que ainda não extravasou para as ruas, mas ele está lá, nos corredores das universidades, nos gabinetes, nos laboratórios. Mas a proposta do governo foi indecente, porque só passa quem tem seis anos de menção máxima. Há pessoas que estão há 20 anos e apesar de terem avaliações de excelente não vão progredir, porque basta uma avaliação de "muito bom" para aquela pessoa não ter progressão remuneratória.
Os investigadores são vistos pela sociedade como dependentes?
Esta legislatura serviu para expor o grau de trabalho informal do ensino superior, ainda falta fazer o trabalho a nível da precariedade. O trabalho informal - as bolsas, que não tinham nem contrato de trabalho nem segurança social - foi um alvo. Isso demonstra quão lá para trás estávamos. As pessoas mais qualificadas estavam afastadas de qualquer direito social, completamente desprotegidas. Não tinham sequer um recibo verde para se agarrar. Nós estamos a escalar uma montanha e o desafio obviamente tem de ser este da precariedade, que obviamente tem reflexos sociais. Que encarregado de educação é que diz ao seu educando: vai para a investigação porque aí há futuro? Ele vê são bolseiros, prepotência, concursos a que a admissão parece estar estabelecida à partida, a dita endogamia e clientelismo. E os concursos que abrem são tão poucos. O professor é mal visto, o conhecimento é mal visto. Parece que estou a ouvir os colegas lá atrás da escola a dizer: Não vale a pena estudar, o que importa é trabalhar.
Tem referido muitas vezes o valor que seria preciso para chegarmos à media europeia de 1,9% de despesa pública com o ensino superior.
É mais pequeno do que o buraco de um ano do Novo Banco: são 600 milhões de euros. A nossa ideia não é a de que seja feito amanhã, mas é um caminho que devemos ter. Não podemos ter é, como agora, o ensino superior só financiado em 54% pelo Estado central. Os outros 46% vêm de propinas e de financiamento europeu. Isto não é sustentável e cria um grande impedimento para as nossas universidades em termos de competição mundial. O desinvestimento que existe do estado português no ensino superior e na ciência tem reflexos na capacidade competitiva que as nossas universidades têm a nível global. Esse é um problema que os nossos investigadores têm superado com muita inteligência e com uma dedicação incrível.
Que expectativas tem para 2019?
Ao nível do OE, há o perigo de redistribuir o dinheiro do ensino superior e da ciência dando mais dinheiro à ciência, mas sem resolver os problemas de precariedade, reduzindo no superior. Isso é um erro crasso. Temos de ter um equilíbrio e uma articulação entre os dois. Na última proposta que conheço há um crescimento de apenas 20 milhões nos estabelecimentos de ensino superior e 80 milhões na ciência. Isto vai gerar tensão porque as instituições não conseguem corresponder àquilo que lhes é pedido e cria tensão porque estamos a colocar milhões em emprego precário, que não vai responder àquilo que são as legítimas aspirações destas pessoas. 2019 será sem dúvida um ano de tensão marcado por aquilo que são opções políticas. Creio que esta legislatura mostrou a força do SNESup. A nossa mensagem é de milhares de docentes e investigadores. Nós representamos cerca de 30 mil pessoas.
Entrevista atualizada às 12.30: Depois de a entrevista ter sido feita, o ministro Manuel Heitor reuniu com o SNESup na última semana, ao contrário do que aqui fora escrito.