O nosso mundo interior é como uma galáxia
Eis uma história portuguesa. Uma história do que somos, talvez do que não sabemos que somos. Assim, não parece possível referir o lançamento do filme O Movimento das Coisas, de Manuela Serra, sem começar pela mais crua objetividade: rodado em 1979/80, em Lanheses, no concelho de Viana do Castelo, tem data de conclusão de 1985 e chega às salas de cinema, em cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa, neste ano da graça da 2021.
Que dizer destes 36 anos de espera? Podemos encarar a situação através da consagrada ideologia futebolística: depois de vários ressaltos, anónimos e imprevisíveis, a bola entrou na baliza e o próprio acontecimento (o golo, hélas!) surge desvalorizado pelo empenho em explicar de quem é a "culpa"... Curiosamente, nesse tribunal permanente, a noção pueril de culpabilidade rasurou qualquer hipótese ou desejo de inocência. Fiquemo-nos, por isso, por uma evidência amarga: a história do cinema português das últimas décadas envolve um capítulo específico sobre as dificuldades de difusão dos respetivos filmes.
Haverá outra maneira de dizer isto. Não para "justificar" os factos, apenas para não menosprezarmos a sua densidade: na sua origem, como agora, O Movimento das Coisas é um objeto à beira do inclassificável. Poderemos, talvez, aproximá-lo da obra de António Reis e Margarida Cordeiro, a começar pelo emblemático Trás-os-Montes (1976), quanto mais não seja pela resistência a reduzir a vida rural a uma qualquer forma de pitoresco, seja ele político ou turístico. O paralelismo é sugestivo, mas pouco mais do que isso: na sua singularidade criativa, O Movimento das Coisas parece ter criado um género de que, por cruel ironia, ficou como solitário e fascinante representante. É mesmo o único filme realizado por Manuela Serra, afinal testemunhando uma irredutível trajetória de vida (remeto o leitor interessado para a excelente e esclarecedora conversa de Ilda Teresa de Castro com Manuela Serra, À volta d"O Movimento das Coisas, 2012, disponível em artciencia.com).
Que faz, então, Manuela Serra? Talvez possamos definir o seu filme como um misto de dois contrários que, em última instância, se cruzam e contaminam. Por um lado, há uma aproximação etnográfica da vida dos habitantes de Lanheses: das tarefas de cultivo dos campos à visita ao espaço da feira, das refeições em família à construção de uma ponte sobre o rio Lima. Por outro lado, a noção de etnografia é escassa, eventualmente equívoca: a pouco e pouco, vamos pressentindo que se trata menos de "descrever" e mais de sentir a musicalidade de uma existência comunitária enraizada em rotinas ancestrais, agora desafiada por um "progresso" simbolizado pela fábrica que se vê para lá do rio.
A certa altura, por exemplo, a câmara acompanha uma mulher que, segurando um cesto na mão esquerda, vai usando a direita para lançar sementes à terra. Cinematograficamente, são momentos que não se esgotam na informação (etnográfica, se assim quisermos), participando de uma sensação implícita em todos os momentos do filme: acompanhamos gestos e fragmentos que pertencem a um mundo interior, reconhecível, que possui também as qualidades de um universo "alternativo", dir-se-ia uma galáxia tocada por uma luz redentora (utilizando película de 16 mm, a direção fotográfica de Gérard Collet é, em si mesma, um pequeno prodígio).
Na parte final, uma cerimónia numa igreja, pontuada por uma figura trágica de Cristo na cruz, surge entrecortada pelas neblinas do rio e a suave deslocação de um barco conduzido com vara pelo único tripulante. Através do pequeno milagre que é a montagem cinematográfica, consuma-se o título do filme: todas aquelas "coisas" pertencem a um mesmo movimento feito de contrastes, correspondências, partilhas de vida e tocantes silêncios.
Se é um facto que algum cinema do século XXI nos tem levado a repensar as fronteiras clássicas entre "documentário" e "ficção", então O Movimento das Coisas vem-nos recordar que essa está longe de ser uma questão "moderna" - afinal de contas, A Terra Treme, de Luchino Visconti, tem data de 1948.
Em boa verdade, O Movimento das Coisas explora de forma original uma hipótese criativa que, nos tempos heróicos da Nova Vaga francesa, Jean Rouch praticou com contagiante felicidade. A saber: a "documentação" de determinadas formas de vida através da integração dos seus protagonistas, não como peões incautos do olhar da câmara, antes como assumidos atores da sua própria existência - lembremos o exemplo modelar de A Pirâmide Humana (1961), sobre as relações entre alunos brancos e negros no liceu de Abidjan, cada um interpretando o seu próprio papel, pouco depois da independência da Costa do Marfim.
Pensei, com especial carinho, nas palavras de Fernando Lopes (1935-2012), definindo um rudimentar axioma de trabalho: por vezes, faz-se um filme para que, daqui a algumas décadas, alguém possa dizer "afinal, eles viviam assim". A profecia é verdadeira.
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