O Natal numa cidade chamada Colombo
"A senhora apanha aqui esta rua, atravessa a ponte e vira na primeira à direita." Esta frase podia ter sido ouvida em qualquer cidade, mas foi um vigilante do centro comercial Colombo quem, nesta semana, a dirigiu a alguém que estava perdido. Por esta altura, não há como não saber ali que o Natal se avizinha, seja pela tradicional árvore de 18 metros que conta 20 anos, tantos quantos o próprio centro comercial lisboeta, seja pelas montras das lojas ou pelas 400 estrelas--de-natal, flor característica desta época do ano, que pontuam aqueles mais de cem mil metros quadrados com 340 lojas. Mas talvez nada denuncie tanto a quadra natalícia como a azáfama nos corredores, o vaivém das pessoas entre lojas e os minutos de descanso que perfazem os seus intervalos. Adolescentes caminham juntos pelas ruas e avenidas, turistas passeiam os seus trolleys, famílias carregam nas mãos sacos que deixam no carro para depois tornarem ao referido vaivém; fazem-se chamadas inquirindo gostos alheios que auxiliarão a escolha de um ou de outro presente; as pessoas perdem a paciência, alegram--se, apressam-se, demoram-se.
Na praça central, os mais velhos sentam-se a ver quem passa, leem alguma coisa ou fazem um jogo de sudoku; começam a chegar alguns pais com bebés e crianças, antecipando a vinda do Pai Natal. A ordem é agora ditada por um sistema de senhas, implementado no ano passado, que avisa por SMS os pais quando se aproxima a vez das suas crianças. O Pai Natal, Severino Moreira, virá do parque de estacionamento, onde, num armazém, leva cerca de uma hora a preparar-se. É lá que nos encontramos com essa figura já indissociável do Colombo, que antes desta vida de Pai Natal foi um bancário de barba não tão comprida como hoje. Agora deixa-a crescer a partir de junho.
Encontrá-lo naquela manhã é já assistir a parte de toda uma máquina que funciona ininterruptamente, 24 horas por dia, para que o chão esteja limpo, as lâmpadas acesas, as montras prontas para o olho do cliente, as lojas repletas de mercadoria, os restaurantes dotados de ingredientes e as escadas rolantes sempre a subir e a descer. E também essa máquina que nunca para toma por nome Colombo. A neve que cai na praça central, onde agora está a vila de Natal, por exemplo, é feita por uma empresa britânica, a Snow Business, responsável pelos efeitos em filmes como Alien vs. Predator, Charlie & the Chocolate Factory, O Dia depois de Amanhã, Harry Potter e a Pedra Filosofal ou Notting Hill. Já passava da uma da manhã quando encontrámos Pedro Cardona, técnico dessa empresa, a afinar a queda da neve a que, a partir de amanhã, poderá assistir-se de meia em meia hora naquela praça.
Tarefas como essas são feitas depois de as lojas fecharem, a partir da meia--noite. Os clientes são convidados a sair, embora muitos se demorem nas mesas da restauração e nalguns corredores. A equipa de limpeza, reforçada em 50% nesta quadra natalícia, continua o seu trabalho. O chão é polido. Perguntamos se o aumento de fluxo neste período se reflete no desgaste do chão. Garantem-nos que, em 20 minutos, depois de polirem aquela área, perceberíamos quanto. Um grupo fardado faz a manutenção mensal das escadas rolantes. São chamados trabalhadores para limpar graffiti de um elevador; outro substitui as lâmpadas; há um grupo que retira as letras que dizem "Mantenha a saída livre" nas escadas rolantes e põe outras iguais. "Isto está a funcionar?", pergunta um rapaz de copo de refrigerante na mão, entre um grupo de adolescentes vindos do cinema.
Encontramos António Couveiro, do Horto do Campo Grande, no lugar onde a Rua do Equador cruza com a Avenida das Descobertas. Há dez anos que, entre a meia-noite e as oito da manhã, ele trata das plantas do Colombo, caminhando pelas ruas com um carrinho repleto de regadores e instrumentos prontos para os antúrios, palmeiras, ficus, bambus e agora as estrelas-de-natal do centro comercial. Mesmo de luvas postas, as mãos na terra informam-no sobre a quantidade de água de que cada planta precisa. Retira as folhas caídas e opera demais cuidados.
Os vigilantes vêm e vão, circulando pelo centro comercial. Também o número destes, assim como o de agentes da PSP, é reforçado na quadra natalícia. E, como sempre acontece, um grupo passará aqui a noite de Natal, de 24 para 25 de dezembro.
As luzes apagam-se e só aquelas que são necessárias para os trabalhos são acesas. Aos poucos, os lojistas vão saindo; para que possam ali permanecer depois das duas da manhã, as suas justificações têm de ser aprovadas pelo centro comercial. As obras, e qualquer trabalho em altura, só são feitas durante a noite. Quando finalmente saímos, a porta abre-se para um dos cais onde os camiões descarregam mercadorias. Só que, em vez de um camião, há já centenas de peças de roupa ao relento, penduradas em charriots. À volta, cerca de 20 pessoas trabalham para as encaminhar até à loja.
O verdadeiro Pai Natal
De manhã, os turnos mudam e a limpeza, manutenção e vigilância continuam. Passam as máquinas de limpar o chão e lavam-se os vidros das entradas. Antes das oito da manhã, já se veem pessoas à porta, mas, ao contrário de dias como o Black Friday, são sobretudo lojistas, que aguardam a entrada no centro. Abrem-se as portas, o rodopio intensifica-se. Antes de assistirmos à chegada de mercadoria à FNAC, às portas da semana que amanhã começa e que representa para esta loja 8% das vendas anuais, encontramos Severino, o pai Natal.
"Ainda ontem me apareceu uma jovem que me diz assim: "Você desculpe, pai Natal: é o Severino?" "Sou. Porquê?" "Era só para confirmar. Foi consigo que eu tirei fotografias enquanto era criança. Tenho ali o meu bebé. Tira com ele?" Agora aparecem cada vez mais estes casos. É muito bonito. Eu comovo-me." O Colombo tem 20 anos e Severino é o seu pai Natal há 17. Conta que o convite lhe foi feito depois de um anúncio em que representava esta figura. "A minha reação foi tão negativa: "Vocês desculpem, mas eu nunca pensei fazer isso num centro comercial."" O resto da história é conhecido, e parte dela está contada no livro que escreveu, Vivências e Reflexões de um Pai Natal. Uma caixa que lhe serve para guardar recordações do Natal deste ano já está quase cheia. Severino tem dossiês de todos os natais passados, onde guarda "fotografias, cartas, histórias do que foi o Natal daquele ano, as decorações; tanto assim que eles [do centro comercial] às vezes perguntam-me como eram".
Foi bancário durante 32 anos e diz que a lotaria lhe saiu com a reforma antecipada. Aí começou esta segunda vida, que nesta altura do ano o traz ao Colombo, onde agora veste o fato e, ao longo de cerca de uma hora, entra aos poucos na personagem: penteando a barba, perfumando-se com água-de-colónia para bebé, aclarando ligeiramente o cabelo, calçando as botas e acrescentando barriga. "A partir do momento em que visto o fato, dá impressão que até o meu andar se altera. Às vezes venho de metro a falar para os meus botões: "Tens de te poupar, ainda faltam x dias e tu estás-te a dar demasiado". Já me começam a doer as articulações, etc. Passado meia hora de aqui estar, já embarquei outra vez nesta alegria. Anestesiei tudo o resto. E não tenho propriamente uma vida fácil: sou uma pessoa humilde, venho de gente humilde, vivi sempre do meu emprego, tenho os meus problemas, algo que me tortura muito atualmente... Eu consigo escapar-me. E não há fingimento da minha parte", conta Severino Moreira.
As histórias sucedem-se. Fala de um menino que se sentou ao seu colo dizendo: "Tu não és o pai natal!" A prova veio - como tantas vezes - de um puxão da barba. E o encontro terminou assim: ""Pai Natal eu vou dar um murro ao Rodrigo, que disse que tu não existias." Eu disse: "Não dês, se calhar ele estava enganado como tu."" Mas nem todas as histórias têm graça. "Uma menina que devia ter os seus oito ou nove anitos veio sozinha, sempre a olhar para trás. Chegou e disse assim: "Pai Natal eu não quero pedir brinquedos; ralha muito com o meu pai quando fores lá a casa para ele não bater mais na minha mãe.""
No posto de socorro está Paulo Domingues, um dos 12 socorristas do Colombo, onde já ocorreram "oito ou nove" paragens cardiorrespiratórias (a ele calharam-lhe quatro), todas elas com um final feliz, e onde pelo menos um bebé já nasceu, garante Carlos Amaral, chefe de operações do Colombo. Paulo, que começou no INEM, trabalha aqui desde 2012. Normalmente há um só um elemento de serviço, mas na quadra natalícia, às sextas-feiras e fins-de-semana, serão dois, das oito da manhã à meia-noite. O mais comum, conta o socorrista, são "queimaduras e cortes na restauração; alguns acidentes no centro, pessoas que escorregam... Mas aquilo a que assistimos mais são as hipotensões, pessoas que andam há horas no centro e não se alimentam; ou então, acontece muito no inverno, as pessoas vêm da rua, entram no centro e ninguém despe roupa." Às vezes acontece aos próprios lojistas. "Nesta altura é complicadíssimo, toda a gente trabalha imenso."
Quando o Natal leva a direção à loja
O camião já chegou ao cais e um grupo, de colete da FNAC vestido, recolhe e organiza os produtos. Os funcionários vêm e vão, entre caixas, livros, jogos e a zona da etiquetagem. Os meses de novembro e dezembro "representam cerca de 27% da venda anual", diz ao DN Pedro Falé, diretor comercial da FNAC.
"Os reforços de pessoal já entraram no Black Friday", refere Jorge Silva, diretor da loja do Colombo, e a estes acrescem ainda outros, que entraram nesta semana. Esses desempenham sobretudo funções de caixa, "porque não requer muita informação técnica". "Temos uma equipa de cerca de 120 pessoas. Normalmente reforçamos esta época de Natal com mais 10%/15%", adianta o diretor da loja. O jantar de Natal já foi feito, mas aqui esse acontece depois da meia-noite - hora a que fecha a loja todos os dias, à exceção de dia 24, em que o Colombo fechará às 19.00 - para que todos os funcionários possam participar. Quanto a tradições natalícias, nesta semana que agora começa e que antecede o Natal as pessoas da sede, onde está a direção da FNAC, vêm para as lojas durante dois dias. "Para poder ajudar e para ter feedback das lojas", diz Pedro Falé, que costuma vender produto, ao contrário, por exemplo, do diretor financeiro, "que normalmente faz embrulhos".
No AKI o Natal acontece sempre mais cedo e, na verdade, a empresa até já prepara o de 2018. Se no final de novembro e na primeira semana de dezembro vendia cerca de 200 pinheiros de Natal por dia, agora esses númros caíram para 20/30. "Desde a crise a tendência é deixar de usar a árvore muito grande para usar a árvore mais pequena. Este ano, por exemplo, as árvores até metro e meio esgotaram ainda no final de novembro, por serem mais acessíveis. Os pinheiros mais artificiais saem mesmo muito mais rápido, até porque nós estamos no centro de Lisboa e temos todo o tipo de clientes. Hoje o que temos são pinheiros de 1,80 metros e começámos a ter só de 2,10 para cima. No passado seriam os mais requisitados", explica Márcio Almeida, diretor da loja AKI do Colombo. As árvores muito grandes, acrescenta, ficam agora a cargo de empresas ou são vendidas para o estrangeiro, África sobretudo. "Temos muitos clientes que antes de irem para o aeroporto param no colombo e fazem as suas compras."
Outra leitura que já é possível fazer sobre este Natal que ainda esperamos é o aumento da compra de presépios. "Este ano estamos a crescer cerca de 60% nos presépios. É interessante perceber que temos muitos clientes que não são católicos e que compram porque é uma tradição." E uma última: este ano, garante Márcio, "as pessoas estão a gastar mais".
Por esta altura, a Perfumes & Companhia recebe mercadoria durante todo o dia, sendo que grande parte dela chega antes da abertura das portas. Sofia Ramos, diretora da loja, diz que esta quadra é "muito especial a nível de equipa". "Une-nos muito, porque todos são fundamentais. Precisamos muito uns dos outros para que tudo funcione", sublinha. Com a "loja cheia das dez da manhã à meia-noite" nesta última semana, Sofia refere que este é um espaço onde "as pessoas procuram muito aconselhamento [para a escolha de presentes]". "Perguntamos como é a pessoa, que estilo de vida tem, se é mais desportiva, mais sofisticada, mais discreta, mais ativa... Convém mesmo conhecer a personalidade da pessoa a quem se vai oferecer. Nesta época natalícia, a interatividade com o cliente é sempre agradável."
Silêncio entre o rodopio
É quinta-feira, dia de missa na Igreja de Nossa Senhora das Descobertas, onde somos recebidos por Elizabeth Maria, a zeladora. Quase 20 pessoas aguardam a chegada do sacerdote, entre elas Maria do Céu, porteira no bairro. "Vivo aqui perto. Geralmente é aqui que venho à missa."
"Ao domingo são muitas as pessoas que vêm passar o tempo ao centro comercial, fazem as suas compras, e depois, no final, vão à missa. Também há muita gente que mora nas redondezas e que faz ali a sua vida cristã, e outras que vêm de fora, do lado de Sintra. E depois há pessoas que criam uma certa afetividade em relação ao lugar. Apesar de estar num espaço comercial onde há tanto movimento, ali não se sente isso", afirma o prior Nuno Fernandes, responsável pela capela do Colombo. Conta que Belmiro de Azevedo, ex-presidente da Sonae, falecido no mês passado, foi lembrado na eucaristia e que partiu dele, ao lado do Patriarcado, a ideia de fazer este espaço que só encontra um par no centro comercial das Amoreiras.
"No Natal temos de estar de gala"
Paulo Gomes diz que, recentemente, teve vontade de pedir a uma pessoa que esperasse, quando a viu sair da praça central mesmo antes de a neve começar a cair. O diretor do Colombo conhece bem as ruas que percorremos dentro do centro comercial. Os lojistas cumprimentam-no. Faz connosco um pequeno jogo de olhar para os transeuntes e identifica-os: uma rapariga que claramente vem cá muito, vira a esquina e não hesita, sabe para onde vai; depois um pequeno grupo que, quando chega à esquina, se detém: "Estão perdidos." Eram turistas.
"No Natal temos de estar de gala. Temos de estar todos de fato; ninguém está de fato de macaco", afirma. Tal significa, por exemplo, que não deve haver lojas em obras, ou, se as houver, terá de ser um número reduzido. Paulo dirige este centro comercial onde trabalham, a cada momento, 1500 pessoas - uma vez que trabalham por turnos. Quando falamos de preparação para esta quadra, responde: "Eu costumo dizer: "Não chamem agências de publicidade para o Natal. O Natal foi inventado há 2000 anos, ou há 100 pela Coca-Cola. É o menino Jesus, o pai Natal, o presépio, a árvore de Natal, a estrela. Depois podemos fazer qualquer coisa, mas que derive destes motivos. Para muitas crianças, este é o primeiro Natal das suas vidas. Não as podemos privar desta experiência."
Este será o último Natal do centro comercial da Sonae Sierra como o conhecemos. Em 2018 arrancarão as obras de expansão da zona comercial e de construção de uma nova torre. Perguntamos ao diretor quantas pessoas cabem agora neste espaço. "Reza a história que em 1999 ao final do dia tinham entrado 180 mil, e que a determinado momento estiveram para fechar as portas por questões de segurança. Era Natal. Não se via o chão. Uma experiência do pior que há." Afirma ainda que, dada a dimensão e a vida do Colombo, cada vez mais olha para ele "como um espaço público, obviamente dominado por lojas". Uma espécie de minicidade? "Mas com responsabilidades acrescidas".
Não querendo caracterizar o cliente do Colombo - "eu diria que temos mais variedade do que na Baixa de Lisboa" -, num instante Paulo Gomes é capaz de apontar vários grupos: das saídas de quarta-feira dos alunos do Colégio Militar aos acompanhantes de doentes ou pessoas que esperam um exame no vizinho Hospital da Luz - "vêm às nove da manhã, despenteados" -, passando pelos turistas, benfiquistas que vêm de 15 em 15 dias, os seniores, as pessoas que vivem nas redondezas. E, a cada esquina, lá está o movimento de tanta gente que precisaria de uma espécie de Censos para ser caracterizada.