Ainda mal abria os olhos quando apareceu no grande ecrã ao lado de Al Pacino em O Padrinho (1972). É ela o bebé batizado já perto do final do filme. E é como se naquele momento, a partir daquele ritual, ficasse subentendido que a água benta a iniciava na religião do cinema, que nunca mais deixou. Agora a celebrar meio século de vida, Sofia, filha de Francis Ford Coppola, um dos monstros sagrados de Hollywood, continua a tentar provar a si própria que já é uma rapariga crescida, mesmo que a figura do pai continue presente. O que é On the Rocks, o seu mais recente filme, senão um misto de fantasia nova-iorquina e estudo da paternidade? E que outro ator senão Bill Murray poderia encarnar um progenitor cheio de carisma? Acima de tudo, Rashida Jones, filha do lendário Quincy Jones, foi a escolha perfeita para dar à personagem principal aquele toque de insegurança tão à imagem de Sofia Coppola. Afinal, ambas sabem o que é isto de se ser filha de alguém famoso..Digamos que viver na sombra de um dos grandes da sétima arte nunca foi algo que desse tranquilidade de espírito a Sofia. Não que ela se exponha à psicanálise mediática, pelo contrário, mas um ou outro dos seus filmes falam por si..A verdade é que é preciso partir dele para se chegar a ela. Por exemplo, da mítica e caótica rodagem de Apocalypse Now (1979), nas Filipinas, a menina pequenina não reteve nada dos percalços hoje bem conhecidos - desde a tempestade que deu cabo dos cenários ao enfarte do protagonista Martin Sheen... Ficou só com a memória da diversão na selva e dos passeios de helicóptero com o pai Coppola. Apenas uma entre outras aventuras de quem cresceu a observar "como se faz" cinema, passando, de quando em vez, para a frente da câmara. Vimo-la, criança, em Juventude Inquieta (1983) e Cotton Club (1984), já adolescente em Peggy Sue Casou-se (1986), e uma mulher feita em O Padrinho: Parte III (1990), na pele da trágica filha de Michael Corleone (quando substituiu Winona Ryder). Mas não era para atriz que estava talhada..Da mãe, Eleanor Coppola, herdou o gosto pela arte e pela fotografia. Foi esta, de resto, quem a incentivou a gastar a mesada em fotografias de artistas. De jovem colecionadora passou a fotógrafa, e daí à realização foi um saltinho. É também por culpa dessa educação pelas imagens que Sofia se fez uma realizadora "visual". Quer dizer, é alguém capaz de sair do "especificamente cinematográfico" para outras áreas da cultura visual sem perder a identidade. Não admira que no seu currículo caiba um (brilhante!) videoclip dos The White Stripes - I Just Don"t Know What to Do With Myself - com Kate Moss a dançar no varão, ao lado de anúncios da Dior, especiais televisivos como A Very Murray Christmas (na Netflix) ou curtas-metragens de palco como New York City Ballet, lançada há poucos dias, que inaugura a temporada de Primavera e a primeira gala virtual desta companhia..Entretanto, passaram mais de duas décadas desde que Sofia Coppola leu As Virgens Suicidas de Jeffrey Eugenides e decidiu que era o momento de se dedicar às imagens de um cinema seu. Esse filme que regista uma feminilidade etérea serviu, desde logo, para aprender a ultrapassar a sua timidez. Era preciso liderar um set e, para isso, falar mais alto para a equipa. "Grita, rapariga!", dizia-lhe o pai, na qualidade de produtor. Tinha ela 29 anos..Desde então Sofia amadureceu. Foi a Tóquio filmar O Amor É Um Lugar Estranho (2003), onde sacudiu os despojos da sua relação com o realizador Spike Jonze, através da bela sinfonia (e sintonia) de Scarlett Johansson e Bill Murray, que lhe valeu um Óscar de melhor argumento original e uma nomeação na categoria de melhor realizador (a). Foi a Paris desconstruir a ideia de filme de época com Marie Antoinette (2006), retrato-guloseima da rainha em Versalhes (que inclui o vislumbre de uns ténis All Star). Voltou a Los Angeles para rodar Somewhere - Algures (2010), à procura da solidão intrínseca de Hollywood no rosto de um pai "adolescente" que está a tentar fazer-se homem. E em 2013, fixou-se no outro lado dessa mesma Los Angeles, com Bling Ring: o Gangue de Hollywood, que é uma visita ao universo trash através da história verídica um bando de adolescentes que em 2009 assaltou casas de famosos (Paris Hilton, Lindsay Lohan, Orlando Bloom...) para roubar roupa, sapatos, joias e obras de arte no valor total de três milhões de dólares..No filme seguinte, O Estranho Que Nós Amamos (2017) - remake de The Beguiled (1971), de Don Siegel, esse com Clint Eastwood - regressou à atmosfera feminina e à repressão sexual de As Virgens Suicidas, desta vez com o pano de fundo da Guerra Civil Americana. E o que é particularmente notório neste título que antecede a última longa-metragem de Coppola, o já referido On the Rocks, é o minimalismo pouco típico da banda sonora. Isto porque a música pop ocupa um lugar essencial no seu cinema. As canções funcionam como janelas para a memória visual dos seus filmes..Como esquecer aquelas melodias românticas em As Virgens Suicidas, partilhadas ao telefone entre as irmãs Lisbon e os rapazes vizinhos? Ou a onirismo de Playground Love dos franceses Air, no mesmo filme. Just Like Honey dos The Jesus and Mary Chain no final de O Amor É Um Lugar Estranho, ou o Sometimes dos My Bloody Valentine a revestir a solidão em Tóquio. O I Want Candy dos Bow Wow Wow em Marie Antoinette, com a câmara a percorrer um festival de tecidos, sapatos, doces, champanhe e penteados que desafiam as leis da Física. O Cool de Gwen Stefani na cena de Somewhere - Algures em que Cleo (Elle Fanning) patina no gelo sob o olhar comovido do pai que remói a sua prolongada ausência da vida dela, ou o I"ll Try Anything Once dos The Strokes com os dois na piscina. Só para citar alguns casos..Com ou sem canções, Sofia Coppola faz 50 anos e continua a ser uma das raparigas mais cool do cinema - apesar de introvertida e parca em palavras, segundo rezam as crónicas. Não é difícil perceber de onde vem essa sugestão: na sua galeria de personagens adultas que não conseguem largar a pele da adolescência reencontramos pedaços de uma pesquisa íntima com o letreiro "I Just Don"t Know What to do With Myself". Mas não é do estilo de cortar os pulsos..Depois de On the Rocks, o seu próximo projeto para a Apple TV+ é uma adaptação do clássico The Custom of the Country, de Edith Wharton, tragicomédia de costumes ainda sem detalhes de elenco. Talvez possamos apenas apostar que vai ser em película e não digital. "São muitos os jovens realizadores que ainda estão reticentes em abandonar a película", escreve Francis Ford Coppola no livro O Cinema ao Vivo e as Suas Técnicas. E aí o papá orgulha-se da filha, "jovem" realizadora que integra o grupo dos que amam o grão da imagem fílmica..dnot@dn.pt
Ainda mal abria os olhos quando apareceu no grande ecrã ao lado de Al Pacino em O Padrinho (1972). É ela o bebé batizado já perto do final do filme. E é como se naquele momento, a partir daquele ritual, ficasse subentendido que a água benta a iniciava na religião do cinema, que nunca mais deixou. Agora a celebrar meio século de vida, Sofia, filha de Francis Ford Coppola, um dos monstros sagrados de Hollywood, continua a tentar provar a si própria que já é uma rapariga crescida, mesmo que a figura do pai continue presente. O que é On the Rocks, o seu mais recente filme, senão um misto de fantasia nova-iorquina e estudo da paternidade? E que outro ator senão Bill Murray poderia encarnar um progenitor cheio de carisma? Acima de tudo, Rashida Jones, filha do lendário Quincy Jones, foi a escolha perfeita para dar à personagem principal aquele toque de insegurança tão à imagem de Sofia Coppola. Afinal, ambas sabem o que é isto de se ser filha de alguém famoso..Digamos que viver na sombra de um dos grandes da sétima arte nunca foi algo que desse tranquilidade de espírito a Sofia. Não que ela se exponha à psicanálise mediática, pelo contrário, mas um ou outro dos seus filmes falam por si..A verdade é que é preciso partir dele para se chegar a ela. Por exemplo, da mítica e caótica rodagem de Apocalypse Now (1979), nas Filipinas, a menina pequenina não reteve nada dos percalços hoje bem conhecidos - desde a tempestade que deu cabo dos cenários ao enfarte do protagonista Martin Sheen... Ficou só com a memória da diversão na selva e dos passeios de helicóptero com o pai Coppola. Apenas uma entre outras aventuras de quem cresceu a observar "como se faz" cinema, passando, de quando em vez, para a frente da câmara. Vimo-la, criança, em Juventude Inquieta (1983) e Cotton Club (1984), já adolescente em Peggy Sue Casou-se (1986), e uma mulher feita em O Padrinho: Parte III (1990), na pele da trágica filha de Michael Corleone (quando substituiu Winona Ryder). Mas não era para atriz que estava talhada..Da mãe, Eleanor Coppola, herdou o gosto pela arte e pela fotografia. Foi esta, de resto, quem a incentivou a gastar a mesada em fotografias de artistas. De jovem colecionadora passou a fotógrafa, e daí à realização foi um saltinho. É também por culpa dessa educação pelas imagens que Sofia se fez uma realizadora "visual". Quer dizer, é alguém capaz de sair do "especificamente cinematográfico" para outras áreas da cultura visual sem perder a identidade. Não admira que no seu currículo caiba um (brilhante!) videoclip dos The White Stripes - I Just Don"t Know What to Do With Myself - com Kate Moss a dançar no varão, ao lado de anúncios da Dior, especiais televisivos como A Very Murray Christmas (na Netflix) ou curtas-metragens de palco como New York City Ballet, lançada há poucos dias, que inaugura a temporada de Primavera e a primeira gala virtual desta companhia..Entretanto, passaram mais de duas décadas desde que Sofia Coppola leu As Virgens Suicidas de Jeffrey Eugenides e decidiu que era o momento de se dedicar às imagens de um cinema seu. Esse filme que regista uma feminilidade etérea serviu, desde logo, para aprender a ultrapassar a sua timidez. Era preciso liderar um set e, para isso, falar mais alto para a equipa. "Grita, rapariga!", dizia-lhe o pai, na qualidade de produtor. Tinha ela 29 anos..Desde então Sofia amadureceu. Foi a Tóquio filmar O Amor É Um Lugar Estranho (2003), onde sacudiu os despojos da sua relação com o realizador Spike Jonze, através da bela sinfonia (e sintonia) de Scarlett Johansson e Bill Murray, que lhe valeu um Óscar de melhor argumento original e uma nomeação na categoria de melhor realizador (a). Foi a Paris desconstruir a ideia de filme de época com Marie Antoinette (2006), retrato-guloseima da rainha em Versalhes (que inclui o vislumbre de uns ténis All Star). Voltou a Los Angeles para rodar Somewhere - Algures (2010), à procura da solidão intrínseca de Hollywood no rosto de um pai "adolescente" que está a tentar fazer-se homem. E em 2013, fixou-se no outro lado dessa mesma Los Angeles, com Bling Ring: o Gangue de Hollywood, que é uma visita ao universo trash através da história verídica um bando de adolescentes que em 2009 assaltou casas de famosos (Paris Hilton, Lindsay Lohan, Orlando Bloom...) para roubar roupa, sapatos, joias e obras de arte no valor total de três milhões de dólares..No filme seguinte, O Estranho Que Nós Amamos (2017) - remake de The Beguiled (1971), de Don Siegel, esse com Clint Eastwood - regressou à atmosfera feminina e à repressão sexual de As Virgens Suicidas, desta vez com o pano de fundo da Guerra Civil Americana. E o que é particularmente notório neste título que antecede a última longa-metragem de Coppola, o já referido On the Rocks, é o minimalismo pouco típico da banda sonora. Isto porque a música pop ocupa um lugar essencial no seu cinema. As canções funcionam como janelas para a memória visual dos seus filmes..Como esquecer aquelas melodias românticas em As Virgens Suicidas, partilhadas ao telefone entre as irmãs Lisbon e os rapazes vizinhos? Ou a onirismo de Playground Love dos franceses Air, no mesmo filme. Just Like Honey dos The Jesus and Mary Chain no final de O Amor É Um Lugar Estranho, ou o Sometimes dos My Bloody Valentine a revestir a solidão em Tóquio. O I Want Candy dos Bow Wow Wow em Marie Antoinette, com a câmara a percorrer um festival de tecidos, sapatos, doces, champanhe e penteados que desafiam as leis da Física. O Cool de Gwen Stefani na cena de Somewhere - Algures em que Cleo (Elle Fanning) patina no gelo sob o olhar comovido do pai que remói a sua prolongada ausência da vida dela, ou o I"ll Try Anything Once dos The Strokes com os dois na piscina. Só para citar alguns casos..Com ou sem canções, Sofia Coppola faz 50 anos e continua a ser uma das raparigas mais cool do cinema - apesar de introvertida e parca em palavras, segundo rezam as crónicas. Não é difícil perceber de onde vem essa sugestão: na sua galeria de personagens adultas que não conseguem largar a pele da adolescência reencontramos pedaços de uma pesquisa íntima com o letreiro "I Just Don"t Know What to do With Myself". Mas não é do estilo de cortar os pulsos..Depois de On the Rocks, o seu próximo projeto para a Apple TV+ é uma adaptação do clássico The Custom of the Country, de Edith Wharton, tragicomédia de costumes ainda sem detalhes de elenco. Talvez possamos apenas apostar que vai ser em película e não digital. "São muitos os jovens realizadores que ainda estão reticentes em abandonar a película", escreve Francis Ford Coppola no livro O Cinema ao Vivo e as Suas Técnicas. E aí o papá orgulha-se da filha, "jovem" realizadora que integra o grupo dos que amam o grão da imagem fílmica..dnot@dn.pt