O ministro demissionário de Macron que anda há anos a dizer que o mundo sofre da síndrome do Titanic
Nicolas Hulot anda há anos a alertar os franceses e o resto do mundo para a necessidade de proteger o planeta. Em 2004 lançou um livro intitulado "A Síndrome do Titanic", que quatro anos depois deu origem a um documentário, com o mesmo título.
O ministro da Transição Ecológica de França, que esta manhã se demitiu em direto na rádio sem avisar o primeiro-ministro ou o presidente, traça um paralelo entre o navio cruzeiro que naufragou depois de ter embatido contra um icebergue em 1912. Enquanto a água começava a entrar no barco, os passageiros ainda comiam, dançavam, despreocupadamente, como retratado no filme Titanic de James Cameron de 1998. E, para Hulot, a situação do mundo é semelhante, pois as pessoas vivem bem, agora, mas o icebergue aproxima-se.
"Eu tomo a decisão de deixar o governo", disse durante uma entrevista à rádio France Inter, após confidenciar que se sentia "sozinho" e "desiludido" no governo face à gestão dos dossiês ambientais. "Vou tomar a decisão mais difícil da minha vida, não quero mais mentir para mim mesmo, não quero dar a ilusão de que a minha presença no governo significa que estamos à altura do desafio", acrescentou, tendo um porta-voz do governo lamentado a forma como Hulot, de 63 anos, anunciou a sua decisão.
"A mais elementar das cortesias mandaria que tivesse informado o presidente da República e o primeiro-ministro", afirmou, à BFMTV, o porta-voz governamental Benjamin Griveaux. Segundo o jornalista da France Inter que entrevistou Hulot, Thomas Legrand, o ministro decidiu demitir-se durante a emissão quando foi confrontado com as perguntas que o mesmo lhe colocou.
Hulot, nascido em Lille, diz que não nasceu ecologista, tornou-se ecologista. O seu avô paterno era arquiteto e vizinho de Jacques Tati, sendo referido como a inspiração da personagem Monsieur Hulot, do filme Les Vacances de Monsieur Hulot, de 1953. O seu pai, Philippe Hulot, era garimpeiro e criador de jardins. E a sua mãe, Monique Moulun, era responsável por várias casas de saúde.
Homem duro, de combate, Hulot tem atrás de si a história de uma infância e adolescência sofrida. O pai morreu de cancro quanto ele tinha 15 anos e quatro anos mais tarde encontrou o irmão, Gonzague, morto na cave, depois de este ter cometido suicídio. Era véspera de Natal. Hulot e a sua outra irmã, Béatrice, não contaram nada à mãe até ao outro dia de manhã. Para não estragar a festa. Mais tarde, em 1989, na sua autobiografia parcial Les Chemins de Traverse, Nicolas Hulot refere-se a "essa imunda noite de Natal".
Nesse livro é passado em revista o seu percurso. Hulot foi nadador-salvador, instrutor de vela, fotógrafo. Esteve na Guatemala na altura do terramoto que fez 20 mil mortos em 1976. Foi para a África com o velejador/navegador Éric Tabarly. No ano seguinte esteve na Rodésia (atual Zimbabwe). Depois da fotografia passa para a France Inter, a mesma rádio em que anunciou, esta terça-feira de manhã, a sua demissão.
Homem dos mil desportos radicais, Hulot chegou a fazer um Paris-Dacar, dois ralis da Córsega, duas expedições polares, desceu o Zambeze. Depois passou para a televisão. Para onde levou esse seu gosto pela aventura extrema. Em 1987, criou, na TF1, o programa Ushuaia, que vai buscar o nome à cidade argentina que serve de capital à Terra do Fogo.
O programa deu, mais tarde, origem à fundação Ushuaia, que se tornou Fundação Nicolas Hulot para a Natureza e o Homem. Esta evoluiu depois para um think tank sobre a transição ecológica, precisamente o nome da pasta que ele ocupava, até agora, no governo francês. O Ushuaia passou depois a Ushuaia TV, canal da TF1, dedicado precisamente a documentários sobre a natureza.
Conselheiro de muitos políticos franceses, lançou, em 2006, um Pacto ecológico, para obrigar à inclusão do tema na campanha para as presidenciais. O seu Pacto foi assinado por cinco dos candidatos na altura na corrida ao Eliseu, Ségolène Royal, Nicolas Sarkozy, François Bayrou, Marie-George Buffet e Dominique Voynet. E mais 740 300 pessoas. Em seguida, após ter conseguido o que queria, anunciou que retirava a sua candidatura às eleições de 2007.
Recusou, várias vezes, entrar em governos. Rejeitou convites, nomeadamente, de Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy ou François Hollande. Foi Emmanuel Macron, o homem centrista do En Marche!, que o conseguiu convencer. Hulot deu-se a si próprio um ano. Para ver o que conseguia. Do lado das vitórias, embora simbólicas, tem o abandono do projeto do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes. Do lado das derrotas, o objetivo de reduzir em 50%, até 2025, o peso do nuclear na produção de eletricidade.
O homem que disse acreditar que o Acordo de Paris não está morto depois da retirada dos EUA do mesmo, parece agora menos crente. "Nós damos pequenos passos, fazemos mais do que os outros países, a França faz imenso, mas esses pequenos passos são suficientes? A resposta é não", declarou esta terça-feira aos microfones da rádio France Inter. Durante a entrevista, Hulot referiu, por exemplo, o falhanço do governo na luta contra o uso de pesticidas.
Quando chegou ao governo, os media exploraram a sua declaração de rendimentos e bens. Hulot detém um património no valor de 7,2 milhões de euros: 2,9 milhões de bens imobiliários, 3,1 milhões relativos à sua empresa Éole e 1,17 milhões relativos a contratos, investimentos financeiros ou contas correntes.
Segundo a France TV Info, o ministro agora demissionário declarou possuir nove veículos a motor, entre os quais um barco e uma moto elétrica. Em sua defesa, Hulot disse, citado pelo Journal du Dimanche, que "em 95% do seu tempo" desloca-se em veículos "elétricos".
Casado três vezes, pai de três filhos, Nicolas Hulot viu-se envolvido em acusações de agressão sexual. Em fevereiro deste ano, a revista Ebdo publicou que, em 2008, fora apresentada uma queixa contra Hulot por factos que remontavam a 1997 por uma rapariga que seria Pascale Mitterrand, neta do ex-presidente francês François Mitterrand. Hulot, que chegou a ser interrogado em 2008, viu o caso ser arquivado por prescrição. E, por isso, os advogados do ecologista decidiram processar, por difamação, a revista Ebdo. Esta, que tinha sido lançada em janeiro, deixou de ser publicada em março. Durou dois meses.