"O meu patrão japonês ama Portugal, a nossa história, e tem uma invejável coleção de CD de Fado"

Brunch com David Lopes, gestor e autor de <em>Uma Varanda Sobre Tóquio</em>.
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O encontro com David Lopes para um café ao final da tarde é no Pão da Esquina, espécie de café-padaria que fica no Restelo, que partilha com a Lapa o estatuto de bairro lisboeta das embaixadas. Já tenho comigo o seu Uma Varanda Sobre Tóquio, livro em português, inglês e japonês publicado pela Avenida da Liberdade Editores e que, no lançamento, na Sala 9 dos Cinemas UCI do El Corte Inglés, atraiu centenas de pessoas, incluindo o embaixador Makoto Ota, que fez questão de vir de traje tradicional, acompanhado por um grupo de senhoras japonesas também de quimono, que encantaram os presentes. David mostra-me no telemóvel algumas fotografias do evento, e confessa-se surpreendido pela grande curiosidade em torno do livro, que resultou de dois anos de vida no Japão, para trabalhar na Aeon, uma gigante empresa japonesa da distribuição.

"Foi talvez o mais singular e difícil desafio profissional que tive. Não existiu propriamente um choque cultural, porque nas minhas cerca de 30 visitas profissionais ao Japão em trabalho, de há 15 anos para cá, fui lidando com as diferenças de forma gradual. No entanto, nunca estamos realmente preparados para viver uma realidade em que, do ponto de vista profissional, as ideias, por melhores que sejam, passem por um longo processo, até serem adaptadas. Sendo nós latinos - e muito individualistas - temos no Japão um desafio adicional, que tem a ver com a necessidade de aprofundarmos os temas em grupo e em equipa. A ideia, a inovação, começa por ser a preparação da terra antes de colocarmos a semente. Chama-se em japonês Nemawashi. Normalmente quando chegamos ao dia da decisão, a reunião final é somente protocolar, pois os cenários e o plano foram já desenvolvidos em dezenas de reuniões anteriores", conta David, de 58 anos, nascido em Lisboa, mas com raízes minhotas, que já tinha uma larga experiência de viver fora, nomeadamente na Polónia e nos Estados Unidos.

David trouxe um livro, talvez por não saber que eu já tinha um exemplar com a bela capa vermelha que dispensa lombada para se poder ver que as páginas foram cosidas, uma homenagem ao esmero que o povo japonês põe em tudo o que faz, seja a preparar uma refeição de sushi, seja a finalizar um automóvel de topo de gama da Nissan ou da Toyota. Também não fui de mãos a abanar: ofereci uma impressão de dois contos de Wenceslau de Moraes, cônsul em Kobe, publicados num Diário de Notícias Ilustrado de 1906, e que, além de nos oferecerem uma ideia dos costumes do Japão, têm belos desenhos com motivos nipónicos. Tinha já antes oferecido o mesmo ao embaixador Ota, cuja residência oficial fica aqui perto.

Uma referência minha a um antigo embaixador japonês que tinha uma revista comprada quando, em miúdo, assistira a um jogo do Benfica que fazia uma digressão pelo arquipélago, faz lembrar a David o dia em que, na Indonésia, o identificaram como sendo do país de Eusébio. Digo-lhe ter uma história do género para a troca: o cazaque que um dia em Astana me diz saber os nomes de todos os portugueses da seleção de futebol de 1966, a começar por Eusébio, e que não quis acreditar quando lhe disse que conhecia José Augusto, que fez a assistência para José Torres no golo que deu a Portugal a vitória sobre a União Soviética (2-1) e o 3.º lugar no Mundial de Inglaterra. Percebemos de imediato que gostamos os dois de viajar e David diz-me que até em lua-de-mel foi à aventura, no caso, até Macau, que quis visitar antes da devolução do território à China, em 1999. "Lembro-me que fomos num voo direto entre Lisboa e Macau", acrescenta. Do casamento, com uma Diretora de Cena, resultaram uma rapariga e um rapaz, que se juntaram às duas filhas mais velhas que David já tinha, dum primeiro casamento.

Licenciado em Gestão pelo ISCTE, David iniciou a vida profissional na Jerónimo Martins e foi assim que nos finais dos Anos 1990 foi parar à Polónia: "Foi a minha primeira experiência profunda de expatriação e marcou-me muito. Muito e positivamente. Fui obrigado a ter aulas de polaco, e isso ajudou-me a entender melhor o país e a sociedade polaca. O Grupo Jerónimo Martins sempre nos incentivou a mergulhar na cultura local e a resistirmos aos copy-paste de levarmos a nossa mochila, de ideias feitas, para outras geografias. Isso alterou, para sempre, a forma como sinto que nos devemos relacionar com o que é diferente. Existem sempre aspetos da nossa vida pessoal e profissional, que, noutra geografia e cultura, nos são menos familiares ou mesmo desconfortáveis. Temos duas opções : ou nos focamos nessas dimensões, ou olhamos para tudo o resto que nos agrada e surpreende positivamente. Sempre optei pela segunda opção. Talvez por isso me considero um incorrigível otimista".

Não resisto a comentar que, em setembro de 2008, quando acompanhava uma visita presidencial de Aníbal Cavaco Silva, visitei uma das lojas Biedronka (ou "Joaninha") que o grupo português tinha adquirido na Polónia. David, nessa altura, já tinha regressado a Portugal e, sem nunca deixar a área da distribuição, aceitado tarefas importantes na Parque Expo e no Oceanário de Lisboa.

Noto o entusiasmo quando menciono a tal exposição internacional de há 25 anos, a celebrar os oceanos na data que assinalava os 500 anos da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia por Vasco da Gama. E pergunto se a Expo e o Oceanário foram Portugal no seu melhor?

"Sem dúvida e quase por todas as razões. A primeira, liga-se ao nosso posicionamento no mundo. Somos uma das maiores nações oceânicas do mundo e, mais do que vocação, o Oceano é o nosso futuro. O Oceano e a forma como o preservarmos será decisivo para o futuro da Humanidade. O Oceano é ciência, biotecnologia e inovação. Quando passarmos de modelos académicos para a produção, com escala, de soluções sustentáveis de produtos alimentares, vestuário, medicamentos, gestão de recursos marinhos e energia, podemos passar a ser uma das mais vibrantes e atrativas economias do mundo. A Expo, metaforicamente mostrou-nos que podíamos voltar ao mar, em vez de irmos só à praia. Foi a maior reconversão urbanística da história do país, revelando ao mundo a enorme qualidade dos nossos quadros técnicos, ao mesmo tempo que "libertou", como nunca, a nossa capacidade criativa e cultural. O Oceanário, e o tempo prova-o, não para de melhorar, no âmbito do seu projeto científico e educativo, sendo considerado, pelos seus pares e pelo público que o visita, o melhor Aquário do Mundo". Não poupa elogios a Tiago Pitta e Cunha, presidente da Fundação Oceanos, que tutela uma das estruturas que mais turistas atrai e que simultaneamente mais dá orgulho aos portugueses.

O imperador Akihito e a imperatriz Michiko vieram a Portugal para visitar a Expo. Não sei o que terá pensado o atual imperador emérito sobre o Oceanário de Lisboa, pois é ictiólogo, especialista em peixes, até com a descoberta de algumas espécies no currículo. David recorda-se dessa vinda do casal imperial, mas data o seu primeiro verdadeiro contacto com a cultura japonesa de um pouco depois: "Aconteceu há cerca de 20 anos e foi amor à primeira vista. Uns primeiros dias em trabalho, numa conferência, e uma segunda metade da viagem dedicada às primeiras deambulações por Tóquio e Kyoto. A gastronomia e a qualidade dos serviços e do atendimento foram as primeiras impressões mais fortes e positivas".

Em 2019 começaram a idas constantes ao Japão. As tais viagens mensais com estada de uma semana. Depois veio a experiência de vida no país, e, através do trabalho na Aeon, a possibilidade, até, de influenciar os hábitos dos 125 milhões de habitantes do arquipélago.

"Juntamente com a equipa, lançámos alguns produtos inovadores no mercado retalhista japonês. A burrata italiana foi um deles, mas o mais diferenciador foi o mediterrânico e saudável húmus. De Portugal foi possível lançar as melhores bolachas de manteiga do mundo e também azeite, vinho, sardinhas em conserva, bem como pastéis de nata congelados", conta David. Esqueci-me de perguntar se o atum rabilho que os japoneses da Tunipex pescam com armação no Algarve também vai parar ao supermercado ou é só para restaurantes de luxo.

Trocamos impressões em especial sobre Nagasaqui, cidade tão ligada à presença portuguesa no Japão e que encantou ambos, até por podermos comer kasutera, ou castela, inspirado no pão-de-ló. "Regressei do Japão com a sensação de que ficou quase tudo por descobrir. No entanto, neste meu livro retrato os lugares e espaços que mais me marcaram em Tóquio. Fora da grande metrópole, outros visitei não-retratados no livro, como Osaka, Fukushima, Nagoya e sobretudo um que mereceria um livro inteiro: Takayama. Mas a grande descoberta sempre foi o Japão dos pequenos gestos, das pequenas ruas e dos seus pequenos restaurantes. O cortar o cabelo, fazendo-me entender por gestos. Apanhar um comboio, sair numa estação desconhecida e andar pelas ruas à procura de histórias...", conta

Agora que estamos a celebrar os 480 anos da chegada dos primeiros mercadores portugueses a Tanegashima, em 1543, é um bom momento para refletir sobre quase meio milénio de relações. "Os japoneses, conhecem a história da nossa chegada ao Japão, e alguma dessa herança cultural, assimilaram-na, até hoje, no seu quotidiano e vocabulário. Sinto que têm um interesse crescente pelo nosso país e pela nossa cultura. Interesse e respeito, atrevo-me a dizer. E isso acontece, também, porque sentem que os portugueses respeitam e admiram a cultura japonesa. Não precisamos de intermediários para nos entendermos, nem para contar uma história que nos é comum", afirma o gestor, a quem peço que me aponte três figuras no Japão que o impressionaram. "Destacaria pela visão, exemplo e honradez, o chairman da empresa para a qual trabalhei, Motoya Okada. Descendente da família fundadora da Aeon, empresa com mais de 300 anos, que fatura 80 mil milhões de euros e emprega 160 mil pessoas e que ama Portugal, a nossa História, e tem uma invejável coleção de CD de Fado. Destacaria também Sonia Ito, como um exemplo, que retrato no livro, da qualidade da nossa Diáspora. E, por fim, um amigo que fiz em Tóquio, chamado Aki Tsuchya, jovem empresário japonês que trabalha mensalmente uma semana em Tóquio, uma semana em Londres e duas semanas em Lisboa. É o verdadeiro cidadão do mundo que ama o nosso pais e a nossa língua, que fala corretamente."

De regresso a Portugal, David teve um papel importante na Jornada Mundial da Juventude, como coordenador da Unidade de Missão criada pela Câmara Municipal de Lisboa. Diz-se orgulhoso do que foi conseguido, da festa em torno da visita do Papa Francisco, da visibilidade que Portugal teve a nível mundial naqueles dias de início de agosto, mas não esconde alguma mágoa também: "Como parte envolvida na organização, faço aqui a minha declaração de interesse, dizendo que poucas foram as iniciativas em Portugal que tivessem convivido com tão "má imprensa". Não vale a pena apontar o dedo ao mensageiro, mas é um facto que entre o que foi previsto acontecer e o que aconteceu, a diferença foi abissal. Diria que existe um pedaço de história, construída por heróis desconhecidos, que está por contar. Talvez por isso, de certa forma os portugueses ficaram surpreendidos pelo que viveram presencialmente ou assistiram na televisão. Nem se viveu o caos, nem a cidade e os seus espaços foram destruídos ou vandalizados. No seu regresso a Roma o Papa Francisco considerou esta Jornada a melhore Jornada de sempre. Foi isso que o mundo levou de Lisboa. Uma mensagem de esperança e humanidade que está expressa em todos os extraordinários discursos e intervenções que o Santo Padre partilhou connosco."

Volto ao tema Oriente, lembrando que a próxima Jornada será na Coreia do Sul que tem muitos cristãos, e pergunto se encontrou no Japão vestígios do cristianismo introduzido pelos portugueses e que resistiu à perseguição dos xóguns Tokugawa, muito forte no século XVII como mostra o filme Silêncio, de Martin Scorsese. "A presença deste Cristianismo, introduzido pelos portugueses, não é evidente para quem não o procura. O número de cristãos, no Japão, não ultrapassa 1% da população e também no Japão a Igreja Católica enfrenta uma crise de vocações e participação dos seus membros", nota David, mas acrescentando que "em todas as cidades existem igrejas católicas e no bairro onde vivia, uma vez por semana, havia uma missa em português, com sotaque brasileiro".

A gastronomia tem direito a constar n"UmaVaranda Sobre Tóquio, livro ilustrado num estilo manga por Yutaka Suzuki, seja quando fala de superalimentos, da caixa Obento ou do chá matcha. E, por isso, lanço o desafio a David de me dizer, em Lisboa, onde iríamos se, em vez de um brunch minimalista de dois cafés (e ao fim da tarde), tivéssemos tido tempo para esta conversa ser durante um almoço. "A gastronomia japonesa é fantástica e muito diversa, tal como a nossa. Não pretendendo estabelecer comparações que não fazem sentido, tenho de desatacar o facto de que ninguém bate Portugal a nível de sopas. Mas voltando ao Japão, a dieta local e as suas diversas cozinhas, e estações do ano, criam uma miríade de conjugações de legumes, peixe, carne e massas, que nunca nos cansa e que sabemos serem parte da razão da saúde e longevidade dos japoneses. Estar sentado no friso de um restaurante, vendo um chef à nossa frente, manipulando facas com uma elegância teatral, é também uma experiência cultural inesquecível. Em Portugal acho que nos aproximamos desta experiência, por exemplo, ao balcão do Kanazawa em Lisboa. Mas vemos surgirem cada vez mais projetos de referência de cozinha japonesa, em vários pontos do país, muitos deles com chefs portugueses, que confirmam que o Japão está também a descobrir Portugal".

Uma das entradas no livro - e não quero deixar de mencionar aqui outras importantes como a dedicada aos Escritores Portugueses e que fala de Armando Martins Janeira ou aquela sobre o embaixador Vítor Sereno, que está a fazer tudo para transformar em futuro os 480 anos de passado luso-nipónico - é Bed and Book, nome de um hostel em Tóquio. E que está hoje geminado com um projeto muito pessoal de David, a Casa das Letras Bed&Books, em Cabrela, que fez o Alentejo juntar-se à "geografia emocional" do gestor.

Admito estar curioso com o projeto de leitura pública que David está ali a desenvolver. Ainda por cima Cabrela é uma freguesia de Montemor-o-Novo, terra que faz parte da minha geografia emocional, afinal vivem lá os meus sogros.

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