"O meu filme é de guerra, mas é declaradamente contra a guerra, é essa a mensagem"

<em>Foxhole</em>, de 2021, esteve em destaque no Outsiders - Ciclo de Cinema Independente Americano, uma iniciativa da FLAD em Lisboa, em março. O DN conversou com Jack Fessenden, nascido em 2000 e filho do realizador Larry Fessenden, sobre o critério da escolha dos conflitos que surgem no seu filme: Guerra Civil Americana, Primeira Guerra Mundial e Guerra do Iraque.
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Escolheu para este seu filme uma guerra do século XIX, uma do início do século XX e outra mais recente. Há outras opções... Compreendo a escolha da Guerra Civil, mas porquê a Primeira Guerra Mundial e a Guerra do Iraque?
A Guerra Civil pareceu-me um ponto de partida nacional para contar uma história americana. Depois, posto perante a escolha seguinte, lembro-me de ter pensado na Segunda Guerra Mundial como um contexto claro e moral para avançar devido à razão por que as pessoas lutavam e a Primeira Guerra ser um pouco mais ambígua. Foi um conflito que escalou muito rapidamente a partir de uma faísca e os Estados Unidos envolveram-se nela no último minuto. Portanto, fiquei um pouco mais interessado na ambiguidade moral da Primeira Guerra, foi essa a escolha. Também pensei que a Segunda Guerra é muito familiar, já foi objeto de demasiados filmes, e eu sou um grande fã de Horizontes de Glória, do Stanley Kubrick, que é sobre a Primeira Guerra nas trincheiras. Também a estética me interessava, os buracos das bombas, a terra de ninguém, esse espaço liminar, e sabia que tinha de ter uma estética contida, por isso escolhi a terra de ninguém. Em relação ao Iraque, eu estava à procura de uma trajetória que fosse uma espécie de abandono da integridade moral. Queria sentir que em cada nova guerra, em cada parte do filme, havia menos razões morais para combater e lutava-se mais pela sobrevivência. Eu cresci a ouvir os meus pais a falarem sobre isso, eles eram muito antiguerra, muito antiguerra do Iraque. Escolhi para primeiro grande plano uma imagem dos marines no Iraque em 2003, mas isso foi numa altura em que havia ainda muito patriotismo nesse aspeto, também havia muita desinformação nessa época, portanto... É sobre os personagens, os marines, que nessas primeiras imagens começam a questionar-se sobre o que estão ali a fazer realmente. A determinada altura, o sargento diz: "Petróleo". Isso estava muito perto do que se dizia durante a minha infância, que estávamos no Médio Oriente pelos recursos naturais.

A Guerra do Iraque, iniciada em 2003, é mais sobre a sua experiência pessoal do que as outras duas que são principalmente História?
Sim, no sentido em que foi a única em que eu já tinha nascido, mas a história da Primeira Guerra é, na realidade, inspirada numa história verdadeira de um amigo do meu avô que serviu com ele na Segunda Guerra Mundial. Portanto, a minha inspiração para fazer este filme veio de uma história real de um soldado americano como o amigo do meu avô, chamado Morgan, que se abrigou numa trincheira durante a Batalha das Ardenas. Um soldado alemão saltou lá para dentro e em vez de terem lutado um contra o outro acabaram por se abrigar os dois e passaram lá a noite enquanto em redor deles o combate prosseguia. O soldado alemão falava fluentemente inglês.

Isso foi durante a Segunda Guerra Mundial, mas situou na Primeira?
Sim. Portanto, peguei nessa história dos dois homens que estabeleceram uma ligação nessa noite. Eles tinham muita coisa em comum, conversaram toda a noite e separaram-se de madrugada. Muitos anos depois, nos EUA depois da guerra, o soldado americano estava numa loja de conveniência na sua terra natal e percebeu que havia um sujeito de fato escuro que o seguia. Quando se voltou para o confrontar viu que era o alemão, que reconheceu imediatamente. Na verdade, ficaram em contacto durante todo o resto das suas vidas. O alemão tinha vindo para a América para ser professor, era uma pessoa muito culta. Assim, peguei nessa história e pu-la no cenário da Primeira Guerra Mundial, que era a que eu queria usar por pensar que era ligeiramente menos clara a razão para os americanos terem combatido nela.

Em relação à Guerra Civil, sendo americano sei que tem a noção que essa foi uma das guerras mais violentas em que os EUA estiveram envolvidos. Foi uma Guerra Civil no século XIX mas que está ainda muito presente na política atual. Qual é o significado que esta Guerra Civil tem para si?
Eu tinha 16 anos quando pensei neste conceito para o filme. Foi há sete anos. As relações raciais eram uma coisa muito presente na minha cabeça na altura. Estava a crescer e a aperceber-me de como o mundo podia ser cruel de muitas maneiras. Eu queria ver a humanidade nele e tentar lidar com isso, pois estava a começar a ver o mundo de uma forma mais realista. Assim, a minha maneira de lidar com isso foi tentar contar a história de como seria ter estado lá e testemunhar as questões de raça em primeira mão, como pessoa branca do norte. Escolhi contar a história de quatro soldados da União que discordavam entre eles se deveriam salvar a vida daquele soldado negro que tinha caído na trincheira deles, se isso valeria o tempo deles. Mais uma vez surge a pergunta sobre porque é que eles estavam a lutar. O meu filme é de guerra mas é declaradamente contra a guerra, é essa a sua mensagem, mas na Guerra Civil eles falam sobre um verdadeiro dilema moral e ético. No Iraque, eles só estavam a tentar sobreviver, mas, na verdade, esse instinto de sobrevivência é o que define o personagem racista, Clark, na parte da Guerra Civil. Ele tem medo, quer sobreviver, por isso volta-se contra os que querem proteger o soldado negro, porque sabe que isso lhe pode custar a vida. Eu tentei ver o lado de toda a gente, tentei ser compreensivo e empático, porque eles eram todos pessoas que estavam a lutar pelo lado certo, mas entre eles havia muito conflito. Não queria apresentar o arquétipo dos soldados da União como sendo todos iguais, queria dar-lhes um pouco mais de nuance.

A guerra, apesar da sua posição contra ela, ainda é um grande tema para um filme. Nas nomeações para os Óscares deste ano havia um filme alemão, baseado num clássico, muito antiguerra, A Oeste Nada de Novo, e depois havia também Top Gun: Maverick, que é quase o oposto, é uma espécie de glorificação...
Eu aí discordo, porque o Top Gun não é uma glorificação da guerra, na verdade é uma glorificação do trabalho duro e do treino. Se prestar atenção vê que nesse filme não há um único morto. Sempre que eles abatem um desses aviões inimigos de alta tecnologia, vê-se sempre o piloto a ejetar-se. Eles fazem questão de mostrar que o filme não é sobre violência, na realidade é sobre o espetáculo que dão aqueles pilotos fantásticos. Penso que Top Gun: Maverick mantém aquela linha de ambiguidade sobre quem é o inimigo, que foi uma coisa que tentei fazer no meu filme. Nunca mostro muito o inimigo, também não tinha orçamento para o fazer, mas ele está presente nos personagens. Portanto, gostei disso no Top Gun, achei que de alguma forma era muito antiviolento, apesar de os pilotos e as suas capacidades serem assustadores, o que poderia levar à violência.

Viu o Top Gun original?
Sim e não gosto do Top Gun original, gosto do Maverick.

Porque é que gosta de um e não do outro?
Talvez tenha alguma coisa que ver com Tom Cruise que, quando era novo, era altamente irritante... Agora, amadureceu e tem um aspeto completamente diferente.

Quando saiu o primeiro Top Gun foi um filme com muito sucesso entre os adolescentes...
Sim. Sinto que era um filme em que o estilo era mais importante do que a substância, enquanto o Maverick tenta ter mais dessa substância e penso que conseguiram.

Viu o filme alemão?
Não, não vi.

Eles começam muito orgulhosos de serem alemães e irem para a guerra e regressarem como soldados famosos, mas, obviamente, a guerra é sobretudo sofrimento... Tem algum tipo de filmes de guerra favorito?
Sim. Normalmente digo que é o Horizontes de Glória, gosto mesmo muito desse filme. É um daqueles filmes que é tão curto que pode ser visto quase por acaso. Liga-se a televisão, está a dar o filme e limitamo-nos a vê-lo, é muito fácil. Depois, um filme não tão curto, A Barreira Invisível de Terrence Malick. É um filme que eu adoro, é uma hora de poesia visual e depois uma hora de pura batalha e, a seguir, mais uma hora de descompressão dos horrores.

Quando decidiu escolher estas três guerras, a Guerra da Independência Americana não foi uma opção?
Nunca me ocorreu. No entanto, a Guerra do Vietname passou-me pela cabeça, podia tê-lo feito, mas a maneira como escolhi as guerras foi muito intuitiva. Não pensei demasiado no assunto, aconteceu.

Teve alguma ligação com os livros que gosta de ler?
Não, eu comecei a ler sobre o assunto e a fazer pesquisa depois de ter escolhido as guerras. Penso que escolhi a partir de uma perspetiva visual, o espaço de terra de ninguém era o cenário que eu queria criar, juntamente com uma trincheira e arame farpado, eram essas imagens que eu queria ver. Sabia que eram da Primeira Guerra, pelas fotografias e filmes que tinha visto. Acho que fui muito influenciado pelas descrições dessas guerras. Em relação à do Iraque era aquele cenário quase incolor, de areia, que caracteriza a guerra no deserto.

Quando se fala de cinema independente, tem a ver com os meios financeiros, não depender dos gigantes de Hollywood, certo? Mas há cinema que se diz independente e pode ser sobre um filme muito, muito caro. É contraditório?
Fiquei muito surpreendido quando li que os Spirit Awards, os prémios para os filmes independentes, são para filmes que custam 30 milhões de dólares ou menos. Para mim, um filme que custa 30 milhões não é um filme independente, porque esses filmes vão ser os mesmos que concorrem aos Óscares, como Tár e Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo... De vez em quando aparece um filme que transcende tudo isso, como Moonlight há uns anos, que custou 1,5 milhões de dólares. Isso sim, é um filme independente. Agora, dizer que estes estúdios de média dimensão produzem cinema independente, acho que é um problema. Quando li aquilo sobre os Spirit Awards fiquei incomodado porque Foxhole foi feito com 250 mil dólares. Esse é o tipo de filme independente em que as pessoas têm realmente de ser criativas nas suas escolhas.

O que é que fica mais caro num filme como o seu? Pagar aos atores?
Num filme como este são os salários a coisa mais cara, porque conseguimos filmar tudo numa só localização. Eu concebi o filme para ser filmado numa tenda, como as que se usam para os casamentos, onde fizemos um buraco. Tivemos cinco dias para filmar cada guerra, que filmámos por ordem. Ao fim de semana o departamento de arte entrava e transformava esse buraco no novo cenário. Foram cinco dias para cada guerra, um prazo muito curto. Na verdade, a parte mais cara de Foxhole foi a filmagem no deserto no fim, quando eles correm pelo deserto, e isso precisava de ser feito no local para dar um final ao filme num cenário real. Isso foi uma coisa em que eu insisti mesmo e que custou uma grande parte do orçamento da filmagem.

leonidio.ferreira@dn.pt

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