O mestrado de Casado e a tentação dos políticos de mentir no currículo
"No tempo da monarquia havia a nobreza e era importante ser visconde. Com a república e o século XX passou a ser relevante o doutor. Em Portugal e em Espanha", diz ao DN o investigador e professor universitário José Adelino Maltez. Vem o comentário a propósito da polémica que envolve o líder do Partido Popular (PP) espanhol, Pablo Casado, cujo mestrado tirado na Universidade Juan Carlos, em Madrid, será analisado pelo Supremo Tribunal espanhol a partir de setembro. O político rejeita que o título tenha sido "um presente", mas caso se confirme será mais um apanhado a maquilhar o currículo académico.
Uma juíza de Madrid considera que existem provas de que o mestrado de Direito Autonómico desta universidade, que Casado tirou em 2008 e 2009, era oferecido a alunos "com uma posição relevante na esfera política e institucional ou que mantinham laços estreitos de amizade ou de carácter profissional" com o diretor do curso, Enrique Álvarez Conde. A investigação partiu do caso de Cristina Cifuentes, também do PP, que se demitiu da presidência do governo de Madrid por este e outros escândalos (foi apanhada num vídeo a furtar perfumes de uma loja).
Cifuentes, que dizia ter tirado o mestrado em 2012, não terá sido a única a conseguir o título fazendo inúmeras equivalências e sem ir às aulas. A juíza Carmen Rodríguez-Medel está a investigar pelo menos outras três alunas, tendo uma delas admitido em tribunal que não fez nada para ter o mestrado e que combinou tudo com Conde. No caso de Casado, a juíza suspeita que houve crime de "prevaricação administrativa e suborno", admitindo que existem "indícios de responsabilidade penal". Como é deputado e tem imunidade, o líder do PP só pode contudo ser investigado pelo Supremo.
Pablo Casado, que na altura era deputado autonómico em Madrid e dirigente da Nuevas Generaciones (a juventude do PP), conseguiu o mestrado de 22 cadeiras com 18 equivalências. O líder do PP admitiu que não teve de ir às aulas e conseguiu os créditos restantes fazendo quatro trabalhos, que não foram encontrados na investigação interna que a universidade fez. Casado diz que fez o que Conde lhe pediu.
Com o Supremo de férias, disponível apenas para dar resposta a casos urgentes, o processo de Casado dará entrada em setembro na Sala de Admissões. Esta pedirá um relatório ao procurador e avaliará se tem competência para ouvir o caso (o que não está em causa porque o líder do PP é um deputado), mas também se existe matéria para prosseguir com a investigação. Se decidir que não, o caso fica por aí, mas pode decidir que precisa de mais informações (que irá pedir à juíza Rodríguez-Medel) ou avançar de imediato com um processo.
Nesta situação, será designado um juiz instrutor que pode convidar Casado a prestar voluntariamente declarações. No final de setembro ou já em outubro, o juiz terá de decidir se é preciso ou não pedir ao Congresso espanhol que levante a imunidade de Casado para o poder investigar, num processo que pode demorar mais um mês. Se chegar a este ponto, os deputados votarão secretamente numa sessão à porta fechada, bastando uma maioria simples para lhe retirar a imunidade. Caso os deputados votem a favor, a investigação avança, mas se votarem contra, o processo fica sem efeito.
Para a juíza Rodríguez-Medel, o mestrado de Casado faz parte de um "plano preconcebido" de Conde "para dar o título de mestrado de forma arbitrária a um grupo concreto de alunos (...) sempre usando a mesma técnica: o reconhecimento ilícito de 40 créditos e a qualificação sem atividade académica dos outros 20 que completam o mestrado".
Casado nega ter feito algo de errado. "O que me fizeram, nunca fizeram a ninguém neste país ou noutro. Não estou a ser investigado por nenhum tribunal e não recai sobre mim qualquer indício de culpabilidade", referiu o líder do PP numa conferência de imprensa, na qual reagiu à decisão da juíza de enviar o caso para o Supremo.
"Era um curso que habilitava para escrever uma tese de doutoramento que não fiz por falta de tempo. Não tenho nenhum título para pendurar em nenhuma parede e não conhecia as pessoas que podiam ter-me dado esse presente", assegurou, lembrando que na altura dos factos "não era ninguém, só um deputado autonómico sem capacidade de fazer nada na Administração".
O PP também já fez questão de lembrar que há outros políticos cujo currículo também é suspeito, incluindo o do primeiro-ministro Pedro Sánchez, que diz ter sido "chefe de gabinete" do alto representante da ONU na Bósnia durante a Guerra do Kosovo mas foi apenas mais um membro da equipa.
"Estas coisas convinham à universidade e aos políticos também", referiu Adelino Maltez ao DN, sobre eventuais facilitismos das instituições, lembrando que a Juan Carlos "é uma grande universidade pública". Para o investigador e politólogo, as exigências de avaliação levaram a universidade a criar, de um momento para o outro, uma série de estruturas para mostrar resultados.
"Estas coisas das avaliações exigiam estatísticas boas e eles começaram a fabricar mestrados e doutoramentos para manter os financiamentos", refere Adelino Maltez, falando por exemplo de cursos ligados à administração autonómica para garantir quadros para os governos regionais em Espanha. Da mesma forma, as universidades convidaram "professores à toa". Em Espanha "há quase 80% de professores convidados, quase todos precários, sem ser de carreira, contratados também muitas vezes por favor", referiu.
Com mais de 40 anos de experiência no mundo universitário português, Adelino Maltez acredita que também haverá casos de favores políticos em Portugal. "Aqui não houve foi a febre dos novos cursos, como em Espanha. Mas manipulação da questão académica, isso é uma fartura", alegou.
Remonta a 2006 o caso de Miguel Relvas, o mais conhecido por ter resultado na demissão do ministro de Pedro Passos Coelho em abril de 2013. Aproveitando o regime jurídico que permitia a obtenção de créditos do ensino superior através do reconhecimento de competências e experiência, o social-democrata concorreu à Lusófona. O curso previa um total de 180 créditos, tendo a universidade considerado que Relvas reunia as condições para a obtenção de imediato de 150. Os restantes foram feitos num ano, com Relvas a concluir a licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais com 11 valores. Em 2016, o tribunal tirou-lhe a licenciatura, considerando que não cumpriu os requisitos para fazer duas das cadeiras. O ex-ministro acabaria por as concluir em 2017.
Também no caso do antigo primeiro-ministro socialista José Sócrates, a licenciatura em Engenharia Civil na Universidade Independente foi posta em causa, mas nunca foi declarada inválida.
Em março deste ano, foi Feliciano Barreiras Duarte a demitir-se de secretário-geral do PSD, um mês após ser eleito. Em causa, as alegações no currículo de que tinha sido visiting scholar na Universidade da Califórnia, em Berkeley, estatuto que nunca teve.
Espanha e Portugal não são casos únicos de políticos apanhados a falsificar o currículo ou a recorrer a plágio para progredir academicamente. Já houve um presidente que se demitiu, mas um primeiro-ministro continua no cargo.
Karl-Theodor von zu Guttenberg - ex-ministro da Defesa alemão
Era visto como favorito a suceder um dia à chanceler Angela Merkel quando, em 2011, se demitiu após ser revelado que tinha plagiado a sua tese de doutoramento. Dois anos depois, seria a ministra da Educação, Annette Schavan, a ser apanhada em falso.
Pál Schmitt - ex-presidente da Hungria
O antigo campeão olímpico de esgrima Pál Schmitt, eleito presidente da Hungria em 2010, acabaria por se demitir dois anos depois. Em causa, o facto de ter plagiado (traduzindo do francês) 197 das 215 páginas da sua tese de doutoramento, sobre os Jogos Olímpicos, defendida em 1992.
Giuseppe Conte - primeiro-ministro italiano
No currículo, Giuseppe Conte afirmava que tinha "aperfeiçoado e atualizado" os estudos de Direito em Nova Iorque, mas a universidade disse que ele só teve autorização para usar a biblioteca. Essas e outras inconsistências não afetaram, contudo, a sua nomeação e eleição, já neste ano.