Baterista, guitarrista, produtor, compositor, engenheiro de som, fotógrafo, o nome de Mário Barreiros confunde-se com a história da música portuguesa das últimas quatro décadas, como se comprova em discos tão essenciais como Recados, dos Jafumega, Mingos & os Samurais, de Rui Veloso, Viagens, de Pedro Abrunhosa ou O Monstro Precisa de Amigos, dos Ornatos Violeta. É no entanto no jazz que desde sempre encontra o porto de abrigo ao qual sempre volta, como novamente faz com o novo disco Dois Quartetos Sobre o Mar, um manifesto ecológico-musical dedicado aos oceanos.."Toco jazz todos os dias, portanto não é bem um regresso, porque nunca saí dele, é talvez mais um regresso à edição de discos de jazz", esclarece o músico, que para já também não pretende deixar o pop-rock de lado: "Desde miúdo que o toco e não penso renegar essa minha parte, até porque adoro canções. Às vezes passo meses a ouvir uma mesma canção". Já no que ao jazz diz respeito, prefere os instrumentais, como logo se percebe ao ouvir este Dois Quartetos Sobre o Mar. "Não gosto muito de improvisações vocais e curiosamente nem de canto lírico, apesar de também ser um grande apreciador de música clássica. O jazz, para mim, é liberdade e flexibilidade. Funciona como uma conversa entre os músicos e numa conversa não é de bom-tom sermos só nós a falar ou a mostrar que temos muito conhecimento sobre determinado assunto. O jazz é talvez o mais parecido, na música, a um jogo de equipa, em que todos têm de se complementar", sublinha o baterista, recordando um conselho dado em tempos por Rão Kyao: "Era pouco mais que um adolescente, quando entrei para o quarteto dele, do qual faziam também parte o António Pinho Vargas e o José Eduardo. Na altura estudava muito e ensaiava bastante tempo sozinho, para os conseguir acompanhar, mas um dia o Rão disse-me que no palco isso valia zero, pois o mais importante era entender-me com os meus companheiros. O jazz é único nesse sentido"..Com uma lista de colaborações, enquanto instrumentista de jazz que inclui verdadeiros pesos-pesados de aquém e além-fronteiras, como é o caso de Wayne Shorter, Lee Konitz, Al Grey, Avishai Cohen, Perico Sambeat, Rao Kyao, António Pinho Vargas, Carlos Bica, Maria João, Mário Laginha ou Bernardo Sassetti, entre tantos outros, Mário Barreiros voltou a não fazer a coisa por menos neste álbum, tocando não com um mas dois quartetos. São eles o Pacífico (ou "de Lisboa"), composto por Carlos Barretto (contrabaixo), Abe Rábade (piano) e Ricardo Toscano (sax alto); e o Abissal (ou "do Porto"), formado por Demian Cabaud (contrabaixo), Miguel Meirinhos (piano) e José Pedro Coelho (sax), a que se junta, em ambos, Mário Barreiros (bateria). "São só craques, eu sou claramente o elo mais fraco destes dois quartetos, ambos compostos por músicos fantásticos", atira com humor, antes de desvendar a razão de ter optado por dois coletivos diferentes. "O pacífico já existe desde 2014, mas todos os seus elementos vivem muito longe uns dos outros e só tocamos juntos quando temos de ensaiar para algum concerto. E foi para poder tocar com mais regularidade que surgiu o Abissal, que é composto por músicos aqui do norte. No fundo são dois diálogos diferentes, que acabam por enriquecer muito o disco"..O mote para esta "espécie de álbum conceptual sem princípio, meio ou fim" surgiu depois de Mário Barreiros ter assistido ao documentário Seaspiracy. "Na altura aquilo mexeu muito comigo, pela total selvajaria que se vive em alto mar, nalgumas partes do mundo. E depois de alguma pesquisa sobre o assunto, disse aos músicos para fazermos algo que tivesse a ver com o mar", conta o músico que vive "há mais de 20 anos na praia da Aguda", entre Gaia e Espinho. "Conheço muito bem os dramas dos pescadores e de quem vive do mar. A pesca de arrasto está a dizimar por completo os oceanos, não só a fauna mas também a flora de onde vem a maior parte do oxigénio que respiramos. Foi por isso que decidimos fazer este manifesto musical em defesa desse património comum, também dedicado a todos os biólogos marinhos, ONG"s e alguns governos que se preocupam com esta questão". E desta forma surgiu um trabalho com dois estados de espírito completamente distintos, fruto dos tais "diálogos diferentes" com ambos os quartetos, um mais à superfície, "com uma toada mais romântica e contemplativa", e outro "mais exploratório e denso", que desce às profundezas do misterioso grande azul. Dois Quartetos sobre o Mar marca também a estreia do novo selo Mário Barreiros Edições, e tanto a produção, mistura, masterização, fotografia e capa têm assinatura do próprio músico. O álbum está disponível nas plataformas digitais e a edição física, de luxo, deverá chegar às lojas já na próxima semana. "Apesar de todas as faixas serem instrumentais, cada uma tem uma letra própria e por isso o CD vem acompanhado de um booklet de 30 páginas, também com algumas fotos minhas relacionadas com a temática do mar", revela Mário Barreiros. Só falta mesmo juntar estes Dois Quartetos, neste caso não sobre o mar, mas num palco. "Já foi manifestado interesse em juntar os dois quartetos numa apresentação ao vivo, mas ainda é difícil calendarizar, porque as salas continuam quase todas reservadas, por causa dos constantes adiamentos de concertos, devido à pandemia". Fica no entanto a promessa: "Vai acontecer!".dnot@dn.pt