O mal e a beleza segundo Helmut Newton 

Referência incontornável na história da moda na segunda metade do século XX, o fotógrafo alemão Helmut Newton é agora evocado num documentário assinado por Gero von Bohem - a passar nos TVCine .
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Eis uma pequena pérola documental disponível na televisão por cabo (TVCine): Helmut Newton - Perversão e Beleza, retrato assinado pelo jornalista e realizador alemão Gero von Boehm que, ao longo de mais de três décadas, construiu uma invulgar filmografia, particularmente focada em personalidades das "artes & letras". Assim, por exemplo, Boehm assinou documentários sobre Arthur Miller (1986), Umberto Eco (1995), David Hockney (1996), Audrey Hepburn (2004) e Isabella Rossellini (2010).

Não seria fácil encontrar uma tradução que refletisse as sugestões do título original: Helmut Newton: The Bad and the Beautiful. Na verdade, a sua alusão ao "mal" e à "beleza" envolve uma memória cinéfila: The Bad and the Beautiful é uma das obra-primas do classicismo de Hollywood (sobre os bastidores de Hollywood), realizada em 1952 por Vincente Minnelli, com Lana Turner, Kirk Douglas e Gloria Grahame - em Portugal, foi lançada como Cativos do Mal.

O eventual paralelismo com Minnelli não é explicitado no filme de Boehm, mas a sugestão fica: tal como o filme dos anos 50 expõe aquilo que o espectáculo oculta ou mitifica, o documentário sobre Helmut Newton enfrenta os lugares-comuns sobre a sua obra - em particular no tratamento dos corpos femininos -, para revelar o misto de assombramento e beleza que nela encontramos.

Como podemos saber através de qualquer nota enciclopédica, a fama de Helmut Newton ficou a dever-se ao facto de as suas fotografias de moda, em especial nas décadas de 1960/70, integrarem a nudez feminina de forma inédita. Uma das personalidades entrevistadas no filme, Anna Wintour, a lendária editora da revista Vogue, reconhece mesmo que, nessa época, encomendar um portfolio a Newton era um risco assumido de forma muito consciente.

O trabalho de Boehm possui a virtude eminentemente pedagógica de nos lembrar que é importante superarmos o primarismo da imprensa "cor-de-rosa", evitando cair na discussão (?) sobre os muitos ou poucos centímetros de nudez que uma imagem dá a ver... O depoimento de Isabella Rossellini é esclarecedor: primeiro, porque recorda que a questão da nudez é apenas um elemento transversal de um contexto social e cultural (os anos 60/70, justamente) em que foram questionadas muitas formas tradicionais de representação dos corpos, e não apenas de mulheres. Rossellini cita mesmo o essencial contraponto de Robert Mapplethorpe (1946-1989), cujas fotografias, em alguns meios, geraram formas de rejeição ainda mais agressivas.

Rossellini lembra que Newton gostava de "mulheres fortes". Sublinha mesmo que, em última instância, as fotografias de Newton são menos sobre "mulheres" e mais sobre um certo imaginário masculino que, por vezes com inconfessado medo, reconhece a força simbólica do feminino. Diz ela, com saborosa ironia, que tudo se passa como se o fotógrafo dissesse: "Gosto de ti, mas talvez não devesse gostar porque tu és como uma arma." Seja como for, Boehm tem o cuidado de evitar qualquer facilidade panfletária ("pró" ou "contra"), pontuando o filme com uma sugestiva variedade de pontos de vista, incluindo um extrato de uma emissão de Bernard Pivot em que Newton escuta Susan Sontag dizendo-lhe que considera as suas fotografias "misóginas", embora não confunda o "homem" com a "obra".

Particularmente sugestivo é o depoimento da modelo Nadja Auermann, recordando que a sua carreira, ainda mal saída da adolescência, foi lançada pelos nus assinados por Newton. Diz ela: "Quando se tem 20 anos, 1,80 de altura e cabelo louro, sentimo-nos como um veado - alguém anda à nossa caça." Lembrando o "humor" de Newton como um fator decisivo para a situação ter sido "divertida", em vez de "embaraçosa", Auermann acrescenta: "As fotografias de Helmut Newton tornaram-me mais forte: eu já não era o veado, porque era igual ao caçador - controlava a situação, podia decidir aquilo que queria ou não queria fazer."

Apesar da sua brevidade (89 minutos), o documentário possui ainda o mérito de situar a visão do fotógrafo em função de uma experiência de vida muito particular. De raízes judaicas, nascido em Berlim, em 1920, Newton (nome verdadeiro: Helmut Neustädter) viveu a sua adolescência num contexto de ascensão do nacional-socialismo, "rodeado de imagens nazis" - "tempos assustadores", como ele próprio recorda, que deixam para sempre as suas "marcas". Saiu da Alemanha em 1938, tendo-se iniciado, dois anos antes, como assistente de Yva (pseudónimo de Elsie Neuländer Simon), notável fotógrafa da República de Weimar que viria a ser assassinada num campo de concentração.

As referências da era de Weimar terão sido decisivas na formação do jovem Newton, da poética de Kurt Weill ao didactismo de Bertolt Brecht, passando pelo misto de observação e sarcasmo da pintura de George Grosz. Dito de outro modo: há nas imagens assinadas por Newton uma consciência muito aguda do tipo de poder que cada um dos fotografados pode sugerir ou convocar. Em breves e eloquentes momentos, Boehm mostra, por exemplo, como o retrato de Jean-Marie Le Pen feito por Newton é, de facto, uma variação iconográfica sobre um retrato oficial de Adolf Hitler.

O filme abre e fecha com a evocação da morte de Newton: a 23 de janeiro de 2004, em Los Angeles, nas imediações do lendário Chateau Marmont (hotel em que realizou muitas das suas sessões fotográficas), sofreu um ataque cardíaco fatal, falecendo nesse mesmo dia - contava 83 anos. A sua mulher, June Newton (australiana, também fotógrafa, assinando Alice Springs, falecida no passado dia 9 de abril, aos 97 anos) surge a evocar o misto de obsessão e alegria do seu trabalho; é num registo na Fundação Helmut Newton, em Berlim, por ocasião de uma retrospetiva comum, ironicamente pontuada pelos nus dela (por ele) e dele (por ela): foi em junho de 2004 e a exposição intitulava-se "Nós e eles".

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