Há um ano, quando voltou a Portugal depois de seis anos a estudar no estrangeiro, Martim Sousa Tavares trazia consigo um diploma de maestro e o projeto para criar uma orquestra que juntasse jovens músicos de várias localidades da zona raiana e levasse a música clássica a locais onde ela nunca tinha sido ouvida e a pessoas que nunca sequer sonharam ouvir Mozart ou Haydn. Chamaram-lhe sonhador. Mas Martim é um sonhador que arregaça as mangas e se faz à estrada. Neste caso, literalmente. Depois de muitos e-mails enviados, várias horas ao telefone, milhares de quilómetros percorridos e reuniões que não deram nada, em janeiro Martim Sousa Tavares apresentou publicamente o projeto da Orquestra sem Fronteiras, com sede em Idanha-a-Nova, onde, em março, deu o primeiro concerto. Poucos meses depois, a Orquestra sem Fronteiras prepara-se para arrancar a sua segunda temporada como uma ida ao Brasil, já em setembro, e para estrear uma ópera em Badajoz, em outubro.."À partida estava tudo contra mim", conta o maestro de 27 anos. "A música clássica não interessa a ninguém e o interior é uma zona sistematicamente esquecida. Como é que eu ia arranjar mecenas que quisessem financiar esta orquestra?" Na verdade foi tudo muito mais rápido do que ele imaginou, admite Sousa Tavares. "Este é um projeto muito altruísta e de coesão social e territorial através da música clássica. É um projeto tão bonito que tinha de funcionar.".A música foi a sua maratona.Martim começou a ter aulas de piano com 8 anos mas nunca andou no Conservatório nem lhe passava pela cabeça seguir uma carreira nesta área. A música era a sua ocupação de tempos livres. Tocava, ouvia, lia, investigava, fazia-o por gosto: "Fui um autodidata." Quando chegou a altura de ir para a universidade pensou: "Aqui acaba-se a brincadeira, chegou a idade de fazer coisas sérias." Entrou para o curso de Ciências da Comunicação, na Nova, mas ao fim de um mês já tinha percebido que não era aquilo que lhe interessava. Pediu transferência para o curso de Ciências Musicais. Dali seguiu para uma licenciatura em Direção de Orquestra em Milão, Itália, e depois para um mestrado na mesma área em Chicago, EUA. "Não fui aquele músico prematuro, que desde pequenino encontrou a sua vocação. Tudo aconteceu por fases", conta. "Decidi ir para música mas não sabia ainda bem o que queria fazer. Gosto de tocar mas não queria ser pianista e também não queria ir para musicologia, então comecei a alimentar esta ideia de seguir direção de orquestra. Mas sabia que seria uma maratona. Seria um longo caminho, com muita perseverança.".No total, foram nove anos de ensino superior. Mas valeu a pena. "Hoje sinto-me um jovem profissional, bastante preparado e capaz de responder a desafios um bocadinho de todas as áreas, e sinto que as Ciências Musicais acabam por me pagar com uma espécie de agilidade do pensamento que não é assim tão comum. Há excelentes músicos que depois não conseguem articular um pensamento e comunicar o significado que a música tem para eles, e isso hoje é muito importante. A música clássica precisa de figuras que são mediadores entre a música e o público. Não chega tocar muito bem e achar que só com isso se vai chegar às pessoas." Afinal, parece que aquela escolha inicial pela comunicação não era assim tão descabida..Comunicar é preciso.Podíamos dizer que esta preocupação para que a música chegue às pessoas e comunique algo lhe está nos genes. Martim é filho de dois jornalistas - Miguel Sousa Tavares e Laurinda Alves. Ele acha que não. "Se fosse pela influência familiar teria ido para Direito, que foi o curso do meu pai e do meu avô [Francisco Sousa Tavares]", diz. Seja como for, a verdade é que ele é maestro e, cada vez mais, também um comunicador..Não é raro perguntarem-lhe se ele é o novo Victorino D'Almeida ou se é o Leonard Bernstein português. Martim ri-se. "Não sou. Mas gosto de me sentir em casa em todo o lado. Já fiz guias de audição na Gulbenkian para um público muito conhecedor e depois falo nas aldeias. São formas de comunicação diferente." Nesse sentido, Bernstein é uma grande inspiração, admite. "Era um músico gigante e generoso, com uma vontade enorme de partilhar música.".Martim Sousa Tavares também tem essa vontade. É o responsável pelos projetos pedagógicos do MPMP - Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa e propôs-se fazer uma série de concertos comentados para a Temporada de Música de São Roque. A assistir a um desses concertos esteve o diretor da Antena 2, João Almeida, que gostou tanto que o convidou a fazer uma série de programas de rádio durante o verão. O programa Casa de Partida tem sido um dos grandes desafios do maestro: "É um formato novo para mim. Estou habituado a dar aulas ou conferências, preparo-me sempre muito, mas depois começo a falar e deixo-me ir. Aqui estou a ler um guião, é diferente." Cada programa tem um tema diferente e Martim prepara-o com grande cuidado. Mas tem sido muito divertido, diz. "Sou o colaborador mais jovem da Antena 2, mas, mais do que a idade, acho que o que faz a diferença é a maneira de falar, que é muito descomplexada. Tento ser muito terra-a-terra." Como previsto, o programa vai terminar no final de setembro, mas Martim já tem planos para voltar à antena em janeiro..Como criar uma orquestra?.A primeira vez que Martim Sousa Tavares dirigiu uma orquestra foi em Vilnius, na Lituânia, no concerto final de um workshop de verão. A estreia como maestro profissional, num concerto inteiramente seu, aconteceu em Itália, quando ainda era estudante. Já nessa altura se revelava o espírito empreendedor: teve a ideia de criar uma orquestra de alunos, perguntou aos colegas quem é que estaria disposto a alinhar, "só pelo prazer de tocarmos", e pôs mãos à obra. "No primeiro ano tocámos todos gratuitamente. No segundo ano consegui pagar despesas. No terceiro ano já tivemos lucro e até fizemos uma minidigressão. Se eu tivesse ficado em Itália teria sido para me dedicar a esse projeto que estava em franco crescimento." Mas ele não queria ficar em Itália, tal como depois não quis ficar nos Estados Unidos. "O normal teria sido ficar, há muitas oportunidades lá", diz. Mas Sousa Tavares já estava há meses a amadurecer a ideia da Orquestra sem Fronteiras: "Era agora ou nunca.".Como sempre, o dinheiro era o grande entrave. E a primeira fase do trabalho foi mesmo arranjar financiadores. "Tive de começar por apanhar um peixe pequeno para depois apanhar um peixe médio e depois chegar o peixe grande." O peixe pequeno foi o escritório de advogados Garrigues, que tem sede em Espanha e foi o primeiro parceiro do projeto, disponibilizando gratuitamente os seus serviços. O peixe graúdo são o banco Santander e a marca de cafés Delta, principais mecenas da orquestra. Depois conseguiu o apoio de três ministérios - Cultura, Educação e Economia - e várias autarquias. A ideia era servir toda a região raiana, com exceção daqueles municípios, no norte e no Algarve, onde já existem orquestras regionais. Enviou propostas para mais de 70 municípios, desdobrou-se em reuniões. "Houve momentos em que me senti mais frustrado porque há muita burocracia, pessoas que é preciso convencer, e em Portugal há esta cultura de não responder aos mails", lamenta Martim Sousa Tavares. Um dos municípios que se mostraram imediatamente interessados foi Idanha-a-Nova, que lhes ofereceu o Centro Cultural Raiano para ser sede..A fase seguinte foi escolher os músicos, e é aí que entram as escolas de música. "O que lhes dissemos foi: nós vamos dar bolsas de estudo aos vossos alunos, vamos cobrir as despesas e vamos tocar juntos. Vocês só têm de nos indicar quem são os vossos melhores alunos - não interessa se são rapazes ou raparigas, se têm 10, 14 ou 20 anos, interessa é que toquem bem. Isto é um projeto democrático e meritocrático." Neste primeiro ano, a orquestra tinha uma bolsa de 250 alunos, na sua grande maioria portugueses mas também alguns espanhóis, que foram entrando nos programas de forma rotativa. "Poderíamos pedir-lhes que tocassem gratuitamente, só pela experiência, e sei que eles o fariam. Mas faço questão de lhes pagar uma bolsa que premeia o estudo e a dedicação deles. Isso faz que a orquestra seja mais cara, mas é a nossa premissa.".Uma orquestra no fim do mundo.A orquestra tem uma exigência de qualidade - e o facto de, depois das primeiras apresentações, ter começado a ter convites é um sinal de que essa qualidade é reconhecida -, mas os motivos de satisfação de Martim Sousa Tavares vão muito para além da música. "O talento existe em todo o lado, seja em Lisboa, em Rabo de Peixe ou em Mirandela. Mas aqui há menos oportunidades. Para mim é uma felicidade ver muitos alunos a ganhar as primeiras bolsas de estudo, terem as primeiras experiências a tocar com uma orquestra completa. Agora vamos ao Brasil e isso é uma coisa extraordinária. Sinto que os jovens a quem é dada esta oportunidade provavelmente já não desistem da música. Conseguimos que eles mordessem o anzol. Quando chegarem aos 18 ou 19 anos já vão ter tantas boas memórias do que este mundo lhes pode oferecer, que acredito que isso é combustível suficiente para se poderem atirar uns quilómetros no desconhecido e irem por essa carreira fora.".Por outro lado, existe também o prazer de divulgar a música numa região onde há poucos concertos de música clássica. Um dos grande sucessos da orquestra são os "concertos de bolso", que são concertos pequenos em lugares pouco habituais. "São os municípios que identificam aldeias que estejam em risco social e demográfico, e nós vamos lá. Tocamos em igrejas, em casas do povo, onde nos quiserem. Já tocámos com uma bola de espelhos em cima da cabeça numa sala onde faziam os bailaricos, já tocámos em igrejas com as pessoas a pôr moedas nas caixas de esmolas de latão mesmo ali ao lado. Eu vou falando e tento explicar o que estamos a tocar, e as pessoas geralmente gostam, genuinamente, batem palmas, há pessoas que choram, há pessoas que se metem no carro e vão ouvir-nos à aldeia seguinte, sabendo que o concerto vai ser igual. Isso é tão bonito. É um público muito disponível.".Mesmo com pouco tempo de existência e com muitos passos por andar, a orquestra começa também a consolidar o seu estatuto ibérico e "sem fronteiras". A 4 de setembro, uma pequena parte da orquestra vai apresentar A Menina do Mar, de Fernando Lopes Graça (a partir de Sophia) no Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro, no âmbito de um programa de intercâmbio com a Orquestra Sinfónica Juvenil Carioca. Em outubro, será a vez de participar num projeto maior: fazer a ópera L'Elisir d'Amore, de Donizetti, em Badajoz. Para esse projeto a formação será de portugueses e espanhóis em partes iguais e terá um maestro espanhol..O neto de Sophia.Quando fala da avó, Martim chama-lhe quase sempre Sophia. "Sophia tem cinco filhos e cinco netos, eu sou o mais novo e o que tem menos memórias. Isso também me distancia um pouco." Quando Sophia de Mello Breyner Andresen morreu, em 2004, ele tinha apenas 12 anos. "Tenho algumas memórias e depois sei muita coisa porque fui ouvindo muitas histórias. Cresci nessa herança. A minha avó é uma figura absolutamente central da nossa família, é a coluna vertebral da família e faz-se tudo com muita consideração pelo que ela pensaria sobre os espaços que eram dela e como é que ela gostaria que as coisas fossem. Há um grande respeito pela memória dela.".Quando voltou para Portugal, Martim ofereceu-se para colaborar em toda a parte musical nas celebrações do centenário da avó, que se realizam ao longo deste ano. Depois, foi convidado pela Casa Andresen (a casa onde a escritora cresceu, no Porto) para fazer a curadoria da programação do espaço. Organizou uma exposição a partir da biblioteca da avó, encomendou uma obra ao compositor Eurico Carrapatoso (para A Noite de Natal), criou o Musa, prémio de música inspirada em Sophia, e um novo espetáculo com A Menina do Mar, entre outros projetos. "A obra de Sophia está editada e está no Plano Nacional de Leitura. Agora, queremos quotidianizar a obra da poeta. Chamar outros criadores para que venham a esta obra tão fértil e plantem nela para que floresçam coisas novas. É isso que estamos a tentar fazer", conta, entusiasmado. Se ser neto de Sophia é uma honra mas não interfere muito na sua vida, ter o apelido Sousa Tavares já é mais difícil de gerir. "O problema é que o apelido chega antes da pessoa. O Sousa Tavares chega antes do Martim", diz o maestro. O apelido tanto pode abrir-lhe umas portas como fechar outras. Nunca se sabe. "Ir para fora de Portugal nesse sentido foi uma libertação, tudo o que consegui foi por mérito próprio. Aqui em Portugal é que é um sofrimento. O meu pai é uma figura que está há muito tempo em antena e cria muitos anticorpos, e eu gostava que conseguissem separar uma pessoa da outra, só por ser filho dele não tenho de ter as mesmas ideias. E sobretudo não gosto quando me apresentam como filho do Miguel Sousa Tavares. Mas é uma circunstância com a qual tenho de lidar.".Um maestro todo-o-terreno."As pessoas acham que o maestro acorda de manhã, veste a casaca e vai dirigir. Mas aquilo que veem do trabalho do maestro é só a ponta do iceberg", avisa. E nem sequer estamos a falar do trabalho de estudo de partituras e dos muitos ensaios. Como, até aqui, as oportunidades que teve foram por ele criadas, Martim não se pode dar ao luxo sequer de só pensar na música. "O meu trabalho, infelizmente, é 90% feito ao computador", diz. Tem de pensar em contratos e contas para pagar. Tem de se assegurar que há água nas torneiras e luz nos camarins. "Temos de ser fundraisers e fazer o tchim-tchim em público com o mecenas, temos de estar motivados e saber motivar os outros. Não dá para ser só aquela pessoa iluminada.".A verdade é que desde que regressou a Portugal não tem parado. Na próxima temporada, Martim Sousa Tavares vai dirigir um concerto com a Orquestra Metropolitana de Lisboa (em maio, uma Viaggio in Italia) e vai experimentar como é ser "só" maestro com cachê. "Às vezes fico frustrado porque tenho de me dividir em várias tarefas e não posso dirigir tantos concertos quanto gostaria. Para isso teria de me dedicar em profundidade a cada concerto e não tenho tempo. Mas, sinceramente, também não sei se conseguiria viver de outra forma."